sexta-feira, 29 de março de 2013

Relação Inesperada - conto gay - Final!


(ver: Início, parte2, parte3parte4)



*** Final – Alexandre ***


            Fizemos o caminho para o escritório num instante. Eu esperava apanhar trânsito, como acontecia todos os dias, esperava ter problemas, esperava ter tempo para pensar no que diria ao meu cliente quando chegasse, ter tempo para visualizar a reunião. Não aconteceu nada disso, passei por sítios que não sabia que existiam, ruas que nem deviam vir no mapa e cheguei ao escritório num instante.

            - Eu conduzo em Lisboa há muitos anos, doutor, um táxi não o trazia aqui mais depressa que eu!

            Acreditei perfeitamente, acreditei sem a mínima hesitação. Portanto sabia-me conduzir bem, sabia cozinhar, disse-me que fazia tudo em casa… tudo… e ainda por cima era super atraente e super sensual. O meu amigo Hugo brincava dizendo que percebia que estava apaixonado quando achava um homem perfeito… estar apaixonado era achar que a pessoa que desejamos não tem defeitos. Bem, então estou mesmo apaixonado.

            Felizmente sempre tive a capacidade de compartimentar os momentos da minha vida. Não tive sucesso a 100%, mas consegui concentrar-me o suficiente no cliente para ele não suspeitar que o meu pensamento de vez em quando atravessava a porta do gabinete para imaginar o que o homem que estava lá fora à minha espera estaria a fazer.

            Quando fiquei sozinho preparei rapidamente uma minuta de um contrato de trabalho. Eu, primeiro outorgante, a contratar o Jaime, segundo outorgante, como motorista, cozinheiro… e prestador de outros serviços considerados necessários. Os oitocentos euros de ordenado a que ele estava habituado e que sairiam limpos porque ele viveria em minha casa e teria direito a alimentação. Seriam esses os meus argumentos. Claro que depois tinha os impostos, mas mesmo assim… deixaria de pagar quarto, deixaria de pagar alimentação, deixaria de pagar transportes… achei a argumentação imbatível.

            Saí do gabinete e senti um nó na garganta. Estava com as secretárias à sua volta a riem-se, mais uma colega minha… riam-se divertidos. Ele estava a rir-se também… com elas. Senti vontade de lhes atirar a muleta à cabeça, como atirara na noite anterior ao sofá.

            «controla-te, Alexandre, controla-te»

            Cerrei os dentes e fiz um esforço sobre-humano, foi mesmo um esforço sobre-humano porque só tive vontade de… o olhar dele era intenso, acho que não consegui disfarçar bem porque acho que me adivinhou os pensamentos. Aliás, fui um bocado bruto.

            - E o meu contrato, já está pronto? Ou a impressora também está a ouvir a história em vez de estar a trabalhar?

            Senti o azedume nas minhas palavras e no meu tom de voz, mas há coisas que são incontroláveis e eu estava sem forças para mais.

            A Susana respondeu-me à letra, estava no escritório há tempo demais para se deixar intimidar por quem quer que fosse, era franca, leal e não engolia sapos, se a provocavam, ripostava e ripostava imediatamente.

            Acho que não percebeu o verdadeiro sentido das minhas palavras, mas o Jaime percebeu-o… elas tinham-se afastado dele e voltara a sentar-se, mas ele nunca desviara os olhos de mim. Senti bem o seu olhar.

            Como é que eu agora lhe podia pedir para assinar o contrato? Sentia-me furioso… e porque e que eu estava furioso? Só havia uma explicação lógica, eu estava apaixonado outra vez… o Jaime atraíra-me desde a primeira vez que o vira e a aproximação fizera-me apaixonar, não há outra explicação. Aconteceu em 24 horas? Só pode, não há outra possibilidade.

            Passei o resto da manhã a imaginá-lo a conversar com as secretárias, a conversar com as minhas colegas, a imaginá-las a tirar-se a ele e ele a gostar, a imaginá-lo a atirar-se a elas, a…

            «raios partam o homem»

            Como se não bastasse, ao almoço tive de levar as secretárias atreladas… é como dizem os brasileiros, «ninguém merece». Esta expressão só tem o verdadeiro sentido com a pronuncia brasileira... «ninguém merece!»

            «raios partam as mulheres»

            Parece que andam desesperadas, não podem ver um homem atraente que…

            Estou a ser injusto, confesso que não tive razões de queixa, fui eu o centro das atenções dele. Conversou com as mulheres, brincou com elas, provocou-as e tudo, mas eu não tive a menor dúvida que se estava a exibir para mim, apenas isso, estava-me a provocar e nem era uma provocação para me irritar, era uma provocação sensual, a forma como me olhava permitiu-me perceber que era assim, que apesar do que estava a fazer, era eu o centro das suas atenções.

            Regressei ao trabalho mais calmo. Voltei a ler o contrato. Metera-o na gaveta e ainda bem que não o rasgara. Reli-o e decidi que estava bem, decidi que o poderia chamar e pedir que o assinasse… dir-lhe-ia que o amava e que o queria comigo e só esperava que não pensasse que aquilo era uma forma de o obrigar… não, ele não pensaria isso, ele gostava de homens como eu e sentia-se tão atraído por mim como eu estava por ele.

            O telefone tocou.

            - O Sr. Ernesto Dias já chegou, doutor!

            Esquecera-me completamente deste. Consultei a agenda rapidamente. Era uma ação de despejo a inquilinos que não pagavam a renda. O Ernesto tinha quatro prédios nas Avenidas Novas, um deles ao lado do meu. Sorri curioso por ver a expressão do Jaime perante aquele cromo.

            Eu acho que não há homem no mundo mais efeminado que o Ernesto Dias, duvido que haja. Ele é do tipo que, mesmo amarrado e amordaçado, só pelo respirar se vê que é gay. É um bom homem, franco, educado, encontrara-o várias vezes em bares gay e assim que me via dava um grito que ecoava por todo o espaço. Ali felizmente era mais contido.

            Apesar de tudo não disfarçava, gostava de dar nas vistas e fazia-o sem o mínimo pudor, sempre bem-disposto. Dissera-me uma vez que demorara muito tempo a resolver o problema na sua cabeça, mas quando decidira assumir-se, fizera-o para a vida, fizera-o para o bem e para o mal. A sua filosofia era «eu não devo nada a ninguém, se dever mandem-me a conta para casa e eu depois vejo se pago ou não».

            - Ai doutor, o que é que lhe aconteceu?

            Tive de sorrir. Olhei depois para o Jaime e vi-o cruzar os braços de sobrolho franzido. Mas o que é isto?

            - Não foi nada, um pequeno acidente! – respondi atrapalhado, vendo o Jaime contorcer-se como se estivesse sentado em cima de vidros

            - Não acredito, doutor! – o Ernesto levantou-se e veio ter comigo – conte-me tudo!

            Tentei sorrir-lhe, mas o que vi foi o Jaime levantar-se a afastar-se rapidamente para se servir de água.

            Expliquei ao homem que caíra e fizera umas luxações, mas a minha mente estava a tentar perceber a reação do Jaime, o que é que se passara? Antes de entrar no gabinete com o Ernesto percebi finalmente. Ele estava sentir o que eu sentira antes, o seu olhar era de fuzilamento, era mesmo, fuzilou-nos aos dois sem a mínima piedade… acabaram-se as dúvidas, ele estava com tantos ciúmes como eu tivera. Acabaram-se os receios, acabaram-se as hesitações, ele sentia por mim o que eu sentia por ele, não havia a menor hipótese de erro ou de equívoco. Decidi naquele momento que lhe pediria para ficar comigo nessa noite, acabou-se o medo de ser recusado.

            Isso fez-me sentir bem. Senti-me feliz, senti-me a flutuar. O Ernesto gostava de mim, gostava de me provocar, gostava do ‘flirt’ a que eu nem sempre respondia, mas brinquei com ele, respondi-lhe à letra e ele até se espantou.

            - Está muito bem disposto hoje! – comentara

            - Estou mesmo! – não tive problema nenhum em admitir, agora sabia bem o que fazer

            À saída do gabinete, quando o acompanhei como sempre fazia… vi o Jaime com ar de “toda a gente me deve e ninguém me paga”. Braços cruzados, sobrolho franzido de tal forma que mal lhe consegui ver os olhos, sentado direito como se estivesse à espera que a poltrona se partisse.

            Senti o Ernesto afastar-se de mim. Vi o seu olhar penetrante e depois vi-o olhar para o Jaime. Quando me encarou novamente a sua expressão dizia apenas uma coisa…

            «eu sei»

 
            Estava sem cabeça para trabalhar. Disse ao Jaime que me queria ir embora e ele correu para a porta, desaparecendo. Parecia ainda mais desesperado para sair dali que eu. Avisei que estaria contactável, mas que me poupassem, para que pudesse descansar um pouco e desci para a rua. O meu carro apareceu logo depois e o Jaime saiu a correr para me abrir a porta. Eu sentia-me já capaz de apertar o cinto de segurança, mas não fiz nada, deixei-o fazê-lo, quis vê-lo curvado sobre mim, quis sentir o seu perfume… ele estava tenso, mas olhou-me quando recuava para sair do carro, fez o que não fizera na tarde anterior, olhou-me e sorriu-me. Estava amuado, mas sorriu-me à mesma.

            Tive de gozar um bocado os seus ciúmes, não resisti. Podia ter dito logo o que queria, mas gostei de o ver amuado, gostei de sentir aquilo, gostei de ver que estava tenso, foi a minha pequena vingança pelos ciúmes que me fizera sentir na manhã. Ele olhava-me com frequência e eu acabei por o olhar também e sorrir-lhe. Acabou por começar a descontrair, quanto mais avançávamos pela ponte, mais relaxado ele ficava.

            - Foi um dia stressante, doutor!

            Sorri outra vez.

            - Muito!

            Não falámos mais, tocou o telefone e era do escritório, teria de atender. Era a Susana. Começou com assuntos profissionais, mas não resistiu a falar no Jaime, que era muito bem-parecido, que era muito simpático… eu nem queria acreditar que estava a discutir o homem que amava com a secretária do escritório, aquilo era demais. Felizmente a linha caiu quando entramos na garagem, mas ainda estávamos no elevador quando tocou outra vez. Irra! Parecia um mosquito carregadinho de dengue.

            O Jaime acabou por me explicar por sinais que ia começar a fazer o jantar, eu acenei a concordar e fui para a sala, esticando-me no sofá… acabei por despachar a secretária, estava sem paciência e não tinha pachorra para pensar naquilo.

            - Oh Susana mande-me um mail, pode ser? – disse um bocado mais ríspido do que pretendia – eu estou cansado e não posso pensar nisso agora!

            Finalmente em silêncio, fechei os olhos para pensar no que dizer, de como dizer… já não me importava que fosse eu a dar o flanco, não me importava de correr o risco de ser recusado, já tinha a certeza que não o seria. Acabou por ser muito mais simples do que pensei.

            Senti-o a aproximar-se, senti o seu olhar… abri os olhos, encontrando os seus fixos em mim. Estava tenso, estava nervoso… percebi que provavelmente estaria na mesma situação que eu, com os mesmos receios.

            - Quer que venha amanhã, doutor?

            Vi-o sacudir a cabeça, como se não fosse aquilo que queria dizer. tive vontade de rir. Estava tão nervoso como eu.

            - Não! – respondi pensando no que dizer a seguir

            É curioso como as coisas acontecem, mesmo quando não temos intenções de…

            A sua expressão mostrou-me que não o teria atingido com mais violência se lhe tivesse espetado uma faca no estômago. O seu instinto foi recuar, mas reagi rapidamente. Agarrei-lhe o pulso e segurei-lho com toda a minha força.

            - Fica comigo, Jaime! – pedi – por favor!

            Ele interpretara o meu ‘não’ de uma forma que não era a pretendida. A sua surpresa foi flagrante e o seu sorriso foi… foi um alívio, foi confusão, foi surpresa, foi prazer, prazer indiscutível.

            - A dormir aqui? – os seus olhos pareciam faróis em máximos

            - A dormir comigo! – agora ia sair tudo – eu hoje… no escritório…

            Engasguei-me, mas vi que ele percebeu bem o que eu queria dizer.

            - Tiveste ciúmes!

            Era uma afirmação, ele percebera, ele sabia que eu estava apaixonado, sabia.

            - Tive vontade de as espancar! – confessei deliciado com o seu sorriso e por me ter finalmente tratado por 'tu'

            Tentei levantar-me, mas ele não deixou, ajoelhou-se ao meu lado e a sua boca colou-se à minha num beijo que eu queria sentir há muito.

            - Eu também tive! – admitiu finalmente

            - Eu sei! – fiz-lhe uma festa na face – queres ficar?

            - Não há nada que eu queria mais! – foi a sua resposta

            Senti os seus braços debaixo de mim e ergueu-me no ar. Levou-me para o quarto e pousou-me suavemente na cama. Despiu-me rapidamente atirando-me a roupa para o chão. Vi-o olhá-la e achei que pensara em ir dobra-la. Devia estar doido. Agarrei-o pela gravata e puxei-o para mim. Mal o consegui ajudar a despir-se, mas não precisei, ele fê-lo rapidamente e acabou por deixar cair o seu corpo quente sobre o meu.

 

*** Jaime – final ***

 
            Disse-lhe que o amava e disse-lho com todas a letras, olhos nos olhos, sem medo, sem stress, sem nada. Ele estava nu como eu, cansado como eu, a sorrir como eu. Ele passou a mão no meu peito e disse que também me amava. Não sei se estremeci com o toque, se estremeci com o prazer que tive em ouvir dize-lo, só sei que me senti feliz. Devo ser o único português a agradecer ter sido despedido.

            - És o primeiro homem a quem digo isto! – senti-me um pouco estranho, mas não me importei porque era a verdade

            - No que depender de mim, vou ser o único!

 

Milan Pfeisinger







porque sinto inveja dos fotógrafos profissionais?


Relação Inesperada - conto gay, parte4 - 'Jaime'




Conto longo


(ver partes anteriores: início, parte2parte3)


*** Jaime ***
 
            Há pessoas que são estúpidas e eu sou uma delas. Venho para casa todo o caminho a pensar no homem, não o consigo tirar da cabeça de maneira nenhuma, viro-lhe o carro do avesso para conseguir o seu número de telefone, consigo descobrir um cartão, consigo arranjar coragem para lhe ligar, ele atende-me bruto e sinto a sua voz adoçar quando lhe digo que sou eu… e depois o que é que faço? Ele trata-me por ‘tu’ e eu fico calado… calado… é possível uma coisa destas?

            Claro que voltou ao tratamento formal, claro que pediu desculpas, claro que não me voltou a tratar… é de ser estúpido ou não? Ter dado um murro na parede aliviou-me, mas não resolveu o problema.

            E depois o que é que faço? Engasgo-me e fico sem saber o que dizer… liguei para que ficasse com o meu número? Que desculpa de merda… que conversa da treta… senti perfeitamente o desapontamento na sua voz, senti-o como senti a sua voz ficar doce quando percebeu que era eu

            Deixei-o sem fala quando me ofereci para lhe preparar o pequeno-almoço, senti que gostara da oferta, senti-o sorrir ao telefone… não lhe disse o que queria, o que tinha planeado, mas consegui emendar um pouco o erro inicial… iria mais cedo, estaria mais tempo com ele e isso era melhor que nada. Falara num contrato para cuidar dele… também não era o que queria, mas seria melhor que nada…ser pago para fazer o que mais se deseja é o melhor trabalho do mundo, não é?

 

            Levantei-me quando faltavam 10 minutos para as sete da manhã, estava acordado há imenso tempo, dormira mal, acordara montes de vezes e já estava farto de rebolar na cama… eu gosto de rebolar na cama, mas não é sozinho.

            Fui à janela e sorri aliviado. O carro estava onde o deixei, estava tudo a correr bem. Tomei um duche, barbeei-me, queria estar… queria estar perfeito.

            Cheirei o fato que costumava usar nos casamentos, já não se sentia o odor de roupeiro. Vesti-me com cuidado e achei que estava bem, achei mesmo, achei que o meu doutor Alexandre iria gostar de me ver. Tive de fazer o nó da gravata sete vezes, mas finalmente dei-me por satisfeito, estava decente. Saí de casa. 7h20. Corri para o carro com o coração a bater. Ainda se sentia o seu perfume.

            - Pão! – disse alto, arrancando para a padaria, eles abriam a porta para vender o pão quentinho aos madrugadores

            - Então o que é que vai ser – perguntou-me o homem

            «De que pão é que ele gosta?»

            Podia não saber, podia ter ficado baralhado durantes uns segundo, mas pedi três tipos diferentes de pão, algum haveria de o satisfazer e eu não estava com tempo para perder. 7h31.

            «Não vou chegar a horas… caraças»

            Três minutos para chegar à 2º circular.

            «raios partam os limites de velocidade»

            Quatro minutos para chegar ao desvio para a Vasco da Gama. Três faixas vazias a subir para a ponte. 7h37. 17 quilómetros e depois o Montijo, o Alexandre à minha espera. Finalmente.

            «agora nós dois, bicho»

            Carreguei a fundo.

            A resposta dele foi um rugido do motor, a resposta física foi colar-me a cabeça ao banco… acho que o conta-quilómetros só parou de subir quando comecei a descer para o meio da ponte e fui eu que tive de levantar o pé. 7h44 e estou dentro do Montijo… cinco minutos para atravessar a ponte e afinal estou adiantado. Calha bem porque me esqueci de tomar café.

Agora é o tempo que não passa. Quero vê-lo.

 

            Entrei pela garagem. Estacionei o carro e subi ao quarto andar. 8h03. Não aguento mais. Toco à campainha. Ele abre-me a porta.

            - Bom dia, doutor!

            O meu coração bate de alegria a ver a sua expressão espantada. Está quase de boca aberta. Olha-me da cabeça aos pés e gosto da sua expressão. Eu não devo estar muito mais descontraído, ele está em roupão. Vejo as suas pernas nuas, tenho um vislumbre do seu peito peludo.

            - Ainda não tomei banho! – é o que me diz depois de um momento em silêncio «isso é um convite?»

            - Precisa de ajuda? – por um momento tive esperança, mas gostei da sua resposta de qualquer maneira… vi-o engolir em seco antes de sorrir

            - Acho que não é preciso!

            Tentou parecer descontraído, mas já não me engana mais, ele atrofiou, é gay sim… e não só é gay, como gosta de mim… e raios me partam se não acabo o dia na cama dele.

            Ouvia o esquentador e tentava imaginar o seu corpo nu debaixo de água. Nem consigo explicar como queria estar lá com ele. Concentro-me nas sandes. Manteiga, queijo, fiambre, uma folha de alface… toda a gente gosta de folha de alface. Pratos… onde estão? Ah, aí estão.

            Quase que o larguei no chão. O esquentador parou de trabalhar. Acabara de cortar a sandes ao meio quando ele reapareceu. O cabelo molhado, os olhos fixos em mim, o meu coração disparou outra vez. Passou a mão pelo cabelo descontraidamente. Aquele homem era lindo.

            - Café simples ou com leite, doutor?

            - Café de máquina! – foi a resposta enquanto se dirigia para ela – cheio!

            Foi ele mesmo que se serviu. Uma chávena de chá cheia de café. Ficou registado, da próxima vez já estaria à sua espera. Ofereceu-me, mas não podia beber mais cafeina, já estava com o coração acelerado o suficiente.

            Sentou-se a observar-me.

            - O Jaime hoje está… impecável! – o adjetivo não foi o que mais me agradou, mas gostei do tempo que precisou para o escolher

            Acho que consegui não corar.

            - O doutor é guloso! – acusei tentando brincar com as três colheres de açúcar que lançou no café

            Ainda pensei que se pudesse aborrecer, mas riu-se, divertido.

            - Não sou, tenho bom gosto… guloso é quem gosta de tudo, que come tudo e bebe tudo… quem gosta de coisas boas simplesmente tem bom gosto!

            Tive de me rir, tinha bom humor e estava bem-disposto, era muito bonito assim… os olhos riam-se tanto como a boca.

            - Ninguém pode por em causa o seu bom gosto! – disse-lhe – o seu bom gosto é…

            - Inegável! – aquela expressão servia bem – isso quer dizer que vou receber uma multa na próxima semana?

            Fingi-me atrapalhado.

            - Espero que não!

            - Abusou dele?

            - Não, doutor! – mordi o lábio para não dizer o que me estava a passar pela cabeça – ele tinha dado mais do que eu lhe pedi!

            «a ti é que levava até não aguentares mais» pensei imediatamente

 

            O telefone tocou… ele fez uma expressão irritada. Se tivesse superpoderes tinha destruído o telefone só com o olhar. Percebi que era do trabalho.

            - Temos de sair mais cedo! – disse parecendo triste

            - Mais uma trapalhada para o doutor resolver!

            - É o que eu faço! – encolheu os ombros a rir – não me tenho dado mal nesse campo!

            Virou-me as costas e afastou-se para o quarto. Pensei oferecer-me para ajudá-lo a vestir-se, mas não achei que aceitasse. Dei uma dentada no que sobrara da sua sandes, mesmo onde tinha estado a sua boca. Queria tanto…

            Sacudi a cabeça e arrumei a loiça, tinha de me controlar, mas não sabia quanto mais tempo iria aguentar assim, iria acabar por perder a cabeça e fazer alguma coisa que não devia… ou se calhar iria fazer alguma coisa que já devia ter feito.

 

            Apareceu-me à frente com um fato castanho. A sua gravata era da cor dos seus olhos. Estava fantástico, mesmo com a muleta ridícula. Vê-lo a coxear só me fazia quere-lo mais… era capaz de o levar ao colo se ele deixasse.

            - Está muito bem, doutor!

            - Achas? – sorriu de uma forma que me fez pensar que os meus olhos tinha dito mais que as minhas palavras, sentia-me a perder o controlo sobre isso e cada vez me importava menos – o nó da gravata deu trabalho, mas não é fácil usar só uma mão!

            - Eu tive de fazer meia dúzia antes de ficar tolerável!

            Estremeci quando ele mo agarrou e o ajeitou. Foi o ato de… carinho? Não sei se foi com carinho ou o que foi, o que me fez tremer foi o olhar doce que me deitou depois do ter feito. Sei que fiz um sorriso de orelha a orelha.

            O caminho até ao trabalho foi feito rapidamente. Ele preveniu-me que iriamos apanhar trânsito, mas quando me disse onde era o escritório quase que bati palmas… betinhos aselhas, compram as bombas, mas depois não as sabem usar… eu tivera muitas obras espalhadas por toda a capital, conhecia muito bem Lisboa, não apanhámos trânsito nenhum e só parámos nos sinais vermelhos. Ele nunca abriu a boca, vi a sua expressão de surpresa pelos caminhos que escolhi, vi-o olhar para a rua sem fazer a menor ideia onde estava, vi-o reconhecer alguns sítios onde passávamos e vi a sua expressão quando parei em frente ao seu escritório. Estava impressionado.

            - Eu conduzo em Lisboa há muitos anos, doutor, um táxi não o trazia aqui mais depressa que eu! – expliquei depois de lhe abrir a porta

            Ele saiu do carro e fixou-me nos olhos.

            - E disse-me que também sabia cozinhar?

            Precisei de um segundo para perceber. Ri-me.

            - Eu sei fazer tudo em casa, doutor! Já lho tinha dito!

            - Pois já! – disse pensativo – e diz que faz tudo! – por um momento achei que aquilo tinha um significado oculto – quanto é que o Pacheco lhe pagava?

            - 800€!

            Sorriu antes de falar.

            - Na próxima rua à direita há um parque de estacionamento! Ao seu lado esquerdo, na porta, tem um cartão que lhe dá acesso… mostre-o ao porteiro e depois deixe-o visível. O escritório é no nono andar.

            Tirou-me a pasta das mãos e entrou no prédio. Porque é que ele fazia aquilo? Detestava quando ele mudava assim de assunto, deixando-me com a cabeça a andar à roda.

 

            Aquilo era um escritório de nível. Tinha duas secretárias. Tive vontade de rir quando me olharam e depois olharam uma para a outra. Gostaram imediatamente de mim. Foi a mais velha que falou, mas a outra não perdeu uma palavra.

            - Posso ajudá-lo?

            O sorriso foi o de quem gosta do que vê e quer ser muito simpática.

            - Sou o motorista do Dr. Alexandre Salazar! – apresentei-me

            - Ah sim? O doutor Alexandre avisou que ia aparecer! – percebi logo que eu era bem melhor do que estavam à espera – pode esperar aí!

            Sentei-me a ler o jornal e ouvi-as bichanar uma com a outra. Não percebi o que disseram, mas o tom de voz era excitado, tanto de uma, como de outra. Acabaram por me oferecer café e eu aceitei, queria criar boas relações, a minha experiência dizia-me que as pessoas mais importantes dum escritório são as secretárias porque são elas que controlam o acesso a quem interessa, podem-nos abrir as portas, ou podem-nas fechar na nossa cara.

            Primeiro estive a conversar só com a mais velha, a Susana, que era mais descarada e depois contei que vira o acidente e fora eu a levar o advogado ao hospital. Chamou logo a outra para ouvir a história também, passados minutos tinha uma advogada também a ouvir o que acontecera. Riam-se do que eu dizia, estavam a ter a emoção do dia, se calhar da semana… melhor que ter uma história, era ter uma história contada por um tipo de quem tinham gostado. Soltavam risinhos nas partes com graça, arrepiaram-se quando falei no sangue… estavam a adorar e eu confesso que também. Adorei principalmente ver o Alexandre sair do seu gabinete e parar de boca aberta a olhar para o ajuntamento.

            Eu acabara de contar a parte em que o fora levar a casa e elas soltaram aquele ‘aahh’ de quem fica enternecido. Vi-o franzir o sobrolho, vi-o fixar os seus olhos nos meus e vi um lampejo de fúria. Ele teve ciúmes. Teve, tenho a certeza… a certeza absoluta, ele teve ciúmes de mim.

            - Ah, doutor Alexandre… estávamos a ouvir a história de ontem! Coitadinho!

            - Não foi nada de especial… e o meu contrato, já está pronto? Mandei-o imprimir, ou a impressora também estava a ouvir a história em vez de estar a trabalhar?

            - Ai doutor, não seja assim, nós não temos culpa do seu acidente! – a Susana voltou ao seu lugar a rir – se o mandou imprimir, já está pronto! Aqui está ele!

 

            Ele passou o resto da manhã a sair do escritório por tudo e por nada para me controlar. Foi maravilhoso ver as suas expressões, se me via sozinho sorria-me e os seus olhos brilhavam, doces; se me via com alguém franzia logo o sobrolho e dependendo da pessoa com quem estava, os olhos faiscavam de irritação. Tinha ciúmes sim senhor. Almoçámos com as secretárias e não podíamos falar, mas não foi preciso, quase parecia que estávamos sozinhos, ele só desviava os olhos de mim para comer e responder às mulheres.

            Foi o regresso ao escritório que me deixou mal disposto, deixou mesmo e foi culpa dele. Dele e duma bicha pirosa que me levou aos arames.

            Eu não gosto de homens que parecem mulheres, nunca gostei. Para ter uma mulher, tenho uma mulher a sério… e tive uma durante anos. Prefiro homens, é verdade, mas homens mesmo. E senti ciúmes do que aconteceu, senti, não tenho problema nenhum em admiti-lo.

            Eu acho que o tipo tinha maquilhagem e tudo, juro que acho, mas não tenho a certeza e não posso afirmar isso. O que eu posso dizer é que não gostei dele assim que o vi entrar. Primeiro olhou para mim de uma maneira que eu não gostei, isso foi logo a primeira coisa que me fez franzir o nariz à figurinha. Não gostei da camisa amarela e não gostei do lenço pescoço. Desculpem lá, mas não acho normal, com todo o respeito por quem achar… e gostar. Devia ter dinheiro, disso não tenho dúvida nenhuma, tinha os dedos cheios de anéis e deviam ser pesados porque parecia ter os pulsos partidos.

            Senti o olhar das secretárias em mim para ver a minha reação. Nem tive de fingir nada, eu estava de boca aberta a ver aquilo. Quando ele se apoiou na secretária da Susana e se curvou estendendo o traseiro na minha direcção, só me deu vontade de rir. Estava a abanar a cabeça com aquilo e com a vozinha dele a dizer ‘boa tarde’ quando o meu coração parou.

            - O Dr. Alexandre já chegou? Ele está à minha espera!

            «foda-se»

            - O doutor está só a terminar um telefonema, se quiser sentar-se uns minutos, o doutor não vai demorar!

            Já tinha percebido que ele nunca recebia ninguém imediatamente. De toda a gente que o tinha vindo ver, ninguém tinha entrado logo.

            - Quero, quero!

            Vi os olhares de gozo das secretárias fixos em mim quando ele veio ter comigo… a sala de espera tinha meia dúzia de poltronas à volta de uma mesa de café.

            Senti que ele me estava a olhar também, mas concentrei-me numa revista que tirara assim que percebera o que ia acontecer.

            Ele sentou-se com um daqueles suspiros… não sei explicar, foi mesmo um «aiii» como se estivesse estafado.

            «se me dizes alguma coisa… ai se me dizes alguma coisa»

            Outra coisa que eu percebera… o Alexandre fazia toda a gente esperar, mas nunca muito tempo, nem tinha passado um minuto quando a porta do seu gabinete se abriu e ele apareceu.

            - Ai doutor, o que é que lhe aconteceu? – guinchou a bicha

            Cruzei os braços irritado… ele olhou primeiro para a bicha e depois é que olhou para mim.

            - Não foi nada, Ernesto, um pequeno acidente!

            «pffff… Ernesto»

            - Não acredito, doutor… conte-me tudo!

            Juro que não ouvi mais nada. Ele correu para o meu homem, correu mesmo. Mas que merda é esta? Senti a garganta seca e a saliva em pasta na boca. Levantei-me para ir beber água.

            Encontrei os olhos do Alexandre fixos em mim, a sua expressão era de surpresa, de confusão e depois acho que percebeu… deve ter percebido porque os seus olhos brilharam e vi a sua boca abrir-se num sorriso de divertimento.

            «puta que pariu… era bom que percebesse… não gostei… não gostei mesmo nada»

            Sei perfeitamente que me tornei a sentar com um ar de poucos amigos, eu sei bem o estado de espírito com que estava e sei bem a má cara que faço quando me sinto assim. Se ele tinha ciúmes, eu também podia ter… pensei meter-me com as secretárias, mas achei melhor não, não conseguia, não queria fazê-lo… queria entrar pelo gabinete dentro, pegar nele, metê-lo no carro e deixar a bicha a falar sozinha… era isso que eu queria. Dei comigo a abanar a perna, aquele tique nervoso que faço quando começo a stressar. 35 minutos? Mas o que é que o raio da bicha tinha para precisar de estar 35 minutos fechada no gabinete com o meu homem… sim, o meu homem… já admito e sei bem que ele já percebeu isso… já percebeu sim, mostrou ciúmes de mim e já viu que eu tenho ciúmes dele, não é preciso dizer nada… estou passado. Isto de eu ser motorista dele não é nada boa ideia.

            Finalmente a porta abriu-se e eles saíram. A bicha a rir-se, feliz, o Alexandre a olhar-me intensamente, divertido, eu de trombas. Eu gosto do sorriso dele, os olhos iluminam-se também e ainda fica mais bonito, mas não quando está a divertir-se às minhas custas. Sei bem que gostei de o ver com ciúmes de mim, tenho de compreender que ele também tenha gostado de ver que tenho ciúmes dele, tenho perfeita consciência disso tudo.

            O meu sorriso foi amarelo, em resposta ao dele, vi o seu abrir-se mais e os seus olhos brilharem… só isso é que me acalmou um bocado. O cliente também percebeu. Viu a expressão dele e olhou-me logo a seguir, via-se que ficara surpreendido. Ele percebeu perfeitamente os nosso olhares e percebeu perfeitamente o seu significado. Vinha quase de braço dado com o Alexandre, mas afastou-se imediatamente… achei isso curioso. Apertou-lhe a mão com um ‘obrigado doutor’ e despediu-se das secretárias com um aceno super efeminado.

            É difícil explicar as sensações que tive, mas a sua maneira de olhar para o Alexandre mudara, a sua maneira de olhar para mim mudou também. Quando passou por mim fez um sorriso cúmplice e piscou-me o olho.

            «Já percebi, o homem é teu»

            Eu não sei se foi isso que ele quis dizer, foi o que eu achei. A partir desse momento passei a respeitá-lo e aprendi uma lição, o ditado que diz que as aparências iludem, aplica-se realmente a toda a gente.

            Quando voltei a encarar o Alexandre o seu sorriso era de censura, continuava divertido, os seus olhos continuavam a brilhar, mas estava-me a censurar. Tive vontade de correr para ele e pedir-lhe desculpas, mas não o fiz, as secretárias não o viam a ele, mas viam-me a mim.

            - Vou sair entretanto, Jaime… se quiser pode ir buscar o carro!

            Levantei-me num pulo e saí porta fora. Finalmente ia tê-lo só para mim.

 

            Saímos cedo, fomos para casa dele antes das 16 horas. Não abrimos a boca o caminho todo, eu não sabia o que havia de dizer e ele parecia que também não. Tanta coisa para dizer e não conseguia falar… e porque é que ele não dizia nada?

            Ele estendeu-se no sofá quando chegámos. A merda do telefone não parava de tocar.

            Preparei-lhe o jantar. Não sabia se queria que o cozinhasse também, ou… não sabia como lhe dizer o que queria… parecia ter adormecido no sofá. Era tão bonito de olhos fechados como de olhos abertos. Eu sabia que estava apaixonado, não tinha dúvida sobre isso, desejava-o mais do que alguma vez desejara a minha mulher… queria agarra-lo, beija-lo, fazer-lhe mimos, queria…

            Abriu os olhos. Aproximei-me mais. Acho que ele percebeu que eu estava nervoso, nunca me tinha sentido assim. Ia dizer-lhe que o amava, não sabia como, mas ia dizer…

            - Quer que eu venha amanhã, doutor?

            Eu sei, não foi o melhor começo, mas serve tão bem como outro qualquer.

            - Não! – foi a resposta

            O meu coração parou. Devo ter feito uma expressão de dor porque ele sorriu agarrando-me o pulso com toda a força.

            - Fica comigo Jaime, por favor!

            - A dormir aqui? - eu não sei como explicar o que senti, só quem já se sentiu apaixonado e passou por esta situação pode compreender... querer dizer as coisas e não ser capaz, querer ouvir algo e nunca mais sair... e depois finalmente as palavras que andamos desesperados para escutar... quem já esteve na mesma situação sabe o que senti

            - A dormir comigo! – vi o seu queixo a tremer – eu hoje… no escritório…

            O meu coração quase que rebentou de alegria.

            - Tiveste ciúmes?

            - Tive vontade de as espancar!

            Ajoelhei-me ao seu lado e colei os meus lábios aos seus num beijo doce, desesperado.

            - Eu também tive!

            - Eu sei… queres ficar?

            - Não há nada que eu queira mais!

            Estava tudo dito e afinal foi tão simples.

            Passei as mãos debaixo do seu corpo e levantei-o no ar. Levei-o para o quarto e minutos depois os nossos corpos fundiam-se num só.