terça-feira, 26 de março de 2013

Relação Inesperada - conto gay, parte2 - 'Jaime'


            Sentei-me na cama sem vontade nenhuma de me levantar. Era a primeira vez que isto me acontecia na vida, mas hoje ia ser um mau dia, toda a gente devia estar na mesma situação, todos os meus amigos.

            Forcei-me a levantar e fui espreitar a rua… carros a passar, autocarros cheios de gente, as pessoas iam para o emprego. Eu também iria, apesar de saber que era o meu último dia. O que faria a seguir? Como seria andar a bater de porta em porta pedindo como um mendigo e ouvindo as respostas que sabia serem o normal na maior parte dos casos «de momento não precisamos de ninguém».

            Olhei para o espelho vendo o meu corpo nu. Tudo no sítio, por enquanto. Com 29 anos ainda consegui ver o puto que conquistara a minha ex. Percebi bem porque lhe custara o meu pedido de divórcio, porque se zangara comigo, porque gritara, porque quase acabara a suplicar para que eu não saísse de casa, ela sempre fora extremamente física, sempre vira o meu corpo, sempre vira a minha cara, nunca percebera que eu não era exatamente feliz. O problema não era dela, era meu. Amara-a durante anos, tolerara-a durante algum tempo e finalmente chegara ao ponto em que não a suportava mais. Não foi por ela ter engordado um pouco, nada disso, foi por eu ter percebido que não aguentava mais tempo com uma mulher, simplesmente não aguentava mais. Durante anos tínhamos feito amor, depois não passava de sexo, depois dei comigo a fechar os olhos e a pensar que era um homem que estava debaixo de mim… finalmente percebi que não valia a pena enganar-me mais, era mesmo um homem que eu queria, era por um homem que eu ansiava diariamente.

            Saí do quarto e atravessei o corredor para a casa de banho. Tomei duche rapidamente e vesti-me a correr. Queria ser o primeiro a chegar ao trabalho, sempre fora assim e seria igual no último dia.

            - Bom dia, Jaime! – a empregada do café correu para mim como habitual, pelo menos desta vez não virara as costas a um cliente para me atender – café?

            - Bom dia, Maria… se faz favor…

            Sorri à mulher que corou como também era habitual. Sempre tive imenso sucesso com as mulheres… desde miúdo, na escola. Joguei futebol e tinha as minhas fãs, a minha mulher era uma delas. Mesmo depois de casar habituei-me a que as mulheres fossem simpáticas comigo, raramente tinha dificuldades nas repartições públicas, houve períodos em que até me convenci que a aliança que tinha no dedo as atraia ainda mais, mas nunca traí a minha mulher, nunca. Se calhar por isso é que acabei por não aguentar mais, se o tivesse feito, se tivesse tido os meus casos como muitos homens casados, se calhar ainda estava com ela e éramos os dois felizes, mas eu não sou assim.

            Saí do café e encostei-me na paragem à espera do autocarro. Lembrei-me daquela madrugada em que, ao entrar, vi dois putos que me comeram com os olhos… literalmente. Vinham da noite, não tive a menor dúvida em relação a isso. Um deles saiu antes de mim, o outro continuou a olhar-me duma forma muito pouco discreta até eu me levantar para sair. Não sei dizer o que me passou pela cabeça, mas fiz-lhe sinal para sair comigo… e ele seguiu-me. Abrira o portão da obra e ele entrara atrás de mim. Quando me virara depois de trancar o portão já ele estava de joelhos à minha frente a abrir-me as calças. Só parara quando eu me descontrolei e explodira na sua cara. Perguntara-me se eu gostara e eu respondera que sim… gostara mesmo. Foram as únicas palavras que trocamos, estavam a chegar os trabalhadores e ele escondeu-se atrás duma pilha de tijolos. Eu tornara a abrir o portão, os homens entraram e ele esgueirara-se para fora a correr. Nunca mais o vira.

            Nesse dia, ao chegar a casa, fizera as malas e saíra de uma vez por todas. Era de homens que eu gostava e não havia nada a fazer quanto a isso, dez anos de casamento e uma mamada atrás duma pilha de tijolos tinham sido mais que suficientes para eu perceber isso.
 

            Eram 9 horas quando os meus trabalhadores começaram a chegar. É curioso como acabámos num círculo, em frente ao escritório, a conversar. O assunto era óbvio, o Sr. Pacheco não aguentava mais e ia parar. Eu estava triste, revoltado como todos, mas não conseguia estar chateado com ele, acho que nenhum de nós conseguia. Ele fizera de tudo, aguentara tudo, fizera o que fora possível para aguentar a empresa, mas não havia hipótese. Toda a gente se lembrava de termos quatro obras ao mesmo tempo e quase 120 pessoas a trabalhar, agora éramos 15 numa obra acabada e éramos os últimos.

            O tempo passou sem darmos por isso… entre os comentários sobre o único assunto que nos ocupava a cabeça e os longos silêncios…

            Quando chegou o Sr. Pacheco, pediu-me para esperar pelo advogado e fechou-se no escritório. Estava velho e acabado. Começara do nada e crescera sozinho, passara de servente a pedreiro, de pedreiro a encarregado, criara a sua própria empresa e agora… comigo fora a mesma coisa e ele sempre gostara de mim por isso, sempre me tratara com carinho e consideração, comecei como servente e acabei encarregado, foi o único patrão que tive na vida.

            A nossa frente parou um VW Scirocco azul… lindo.

            - Olha este filho da puta! – ouviu-se

            - Este corno é dos que ganha com a nossa miséria!

            Nem comentei, vi o advogado sair do carro, vi o fato ‘boss’, a pasta de pele, os óculos de sol.

            - O filho da puta… – disse também, mas não verbalizei o resto da frase… «és podre de bom»

            - Bom dia senhores! – disse ele fixando os olhos em mim

            - Bom dia, doutor Alexandre, o Sr. Pacheco está à sua espera!

            Vi-o olhar para o relógio, parecendo sobressaltado.

            - Não estou atrasado!

            - Não senhor! – tive vontade de sorrir… o homem tinha imensa pinta e era um ‘senhor’, mas depois tinha estas coisas assim

            Quase todos já o conhecíamos, ele era o advogado do patrão e já trabalhava connosco há vários anos. O Sr. Pacheco dizia que ele era bom e eu concordava, fisicamente era mesmo bom.

            Era mais baixo que eu, não devia ter mais de 1m70, mas não devia ter mau corpo, pelo menos não tinha barriga, as suas camisas imaculadas não a poderiam esconder. Eu fora uma vez ao escritório e vira-o em mangas de camisa e vi uns braços peludos… andava sempre impecavelmente vestido, os fatos, os sapatos, os acessórios. Sempre que o via olhava para a sua mão esquerda, continuava sem aliança, tinha apenas um anel de curso.

            Finalmente tirou os óculos de sol… olhos doces, cor de mel… como é que um homem de olhos tão doces pode ser advogado? Os advogados são guerreiros, não podem ser assim.

            - Está-se a preparar para nos dar a facada! – ouvi um murmúrio atrás de mim

            Seria isso? Seria estratégia para enganar os saloios?

            - Bom dia novamente, senhores, tenho aqui uma série de documentos para vos entregar…

            Perdi-me de olhos fixos nos seus lábios. Via-o falar mas não ouvi uma única palavra… só quando sentia os seus olhos fixos em mim é que tomava atenção, podia-me estar a fazer uma pergunta.

            Mas não, falou comigo como falou com todos, a reunião terminou, recebemos as cartas de despedimento e a carta para o fundo de desemprego e pronto, acabou tudo. Esperei que ele esclarecesse as dúvidas do pessoal e tranquei o portão vendo-os afastarem-se de mãos nos bolsos, parecendo tão desorientados como eu me sentia. Do outro lado o advogado dirigia-se apressado para o carro. Vira a sua expressão de alívio quando a reunião terminara e achei que aquilo fora tão penoso para ele como para nós… ou se calhar era eu que via as coisas como gostava que fossem.

            «Adeus, doutor Alexandre» pensei tristemente que nunca mais o veria

            Não estava destinado a ser assim. Vi-o escorregar e desequilibrar-se, vi a pasta voar e vi-o a lutar para se manter em pé até ao momento em que chocou violentamente contra a parede… o baque foi estrondoso, foi mesmo, rodou sobre si próprio e aterrou ao lado do carro. Ouvi um novo baque quando bateu com a cabeça na roda do carro e confesso que fiquei dois ou três segundos sem acreditar no que estava a ver. Já assistira a muitos acidentes, sempre trabalhei nas obras, mas nunca vira nada como aquilo.

            Corri para ele.

            - Então, doutor!? – foi a única coisa que me veio à cabeça para lhe dizer

            - Já viu isto?

            Por um momento tive vontade de rir da sua expressão atordoada, estava completamente desorientado, o que era novo para mim, sempre o vira seguro de si, com um ar confiante, concentrado e expressão competente… agora parecia um garoto que tinha caído sem saber bem o que tinha acontecido, só lhe faltava fazer beicinho. Mas quando me olhou, o sorriso morreu-me nos lábios, chocara contra a parede e tinha um enorme rasgão na face esquerda que começava a sangrar.

            - Magoou-se, doutor? Está sangrar!

            - O quê?

            Tentou levantar-se, mas vi uma expressão de dor… magoara-se mesmo. Ajudei-o e vi bem que aquilo não era só uma queda de nódoas negras, sem consequências, não fora apenas o seu amor-próprio e a sua dignidade que tinham sido atingidos, a dor era física e eu já tinha visto aquilo mais que uma vez, para saber que era pior do que ele poderia pensar… se lhe doía agora, pior ficaria quando a adrenalina provocada pela queda passasse.

            A sua expressão era de confusão a olhar-me. O poderoso e confiante advogado tornara-se uma criança confusa e indefesa. Tirei o lenço do bolso para lho por na cara e estancar o sangue, habituara-me há anos a trazer um comigo, um lenço lavado é sempre útil numa obra onde estão sempre a acontecer acidentes. Ele tinha o fato sujo, mas a lavandaria resolveria o problema, se lhe caísse sangue… seria mais complicado. Ele estremeceu quando lhe toquei, mas não consegui saber que foi dor ou…

            - É melhor ir ao hospital, doutor!

            - Não é preciso…

            Tentou sorrir, mas vi dor novamente no seu rosto. Eram todos iguais, que mania de se fazerem fortes. Apontei para o vidro do carro fazendo-o olhar-se.

            - Já se viu bem?

            Acabei com ele no Amadora-Sintra. Liguei ao António e ele estava à nossa espera quando chegamos. Abriu a boca de espanto quando nos viu. A bicha tarada, comeu o advogado com os olhos, mas fiz-lhe sinal para nem abrir a boca… uma coisa era ir tomar um copo com ele, vê-lo no engate e, apesar de ser efeminado, era um bom tipo e eu gostava dele. Só fui para a cama com um homem na vida e foi graças a ele… eram amigos, o António ficou com um e eu fiquei com outro. De momento era o único amigo que eu tinha, mas precisava de o manter de rédea curta porque era um desbocado. Vi bem o seu sorriso quando olhou para trás antes de desaparecerem os dois no hospital.

            Apanhei uma seca fenomenal à espera, mas não me custou tanto como se possa parecer. Fizera-o durante anos para agradar a mulheres, principalmente à minha, agora estava a faze-lo por um homem… mais uma coisa que não era assim tão diferente… gosto de homens, mas as secas são iguais.

            Tive pena dele quando apareceu… um penso na cara, a coxear com uma muleta, o pulso enfaixado, o braço ao peito e uma expressão desconsolada estampada no rosto… parecia um miúdo perdido.

            - Então, doutor, foi sério? – quase sorri com a sua resposta

            - Parti-me todo! – disse-me com um ar que me apeteceu abraça-lo

            Ofereci-me para o levar a casa. Ele não podia conduzir de maneira nenhuma. Fez-se difícil, mas acabou por aceitar… já vira isto muitas vezes e já me magoara mais que uma vez, ficamos sem saber bem o que fazer, frágeis e desorientados. Ele morava do outro lado do rio, mas eu via os autocarros do Montijo a chegarem à Praça de Espanha todos os dias, não seria difícil voltar a casa… a casa… ao quarto minúsculo que alugara.

            Gostei que se preocupasse em saber como regressaria, mas a conversa não foi fácil… ele parecia não ter recuperado do trambolhão e eu… eu não o compreendia, sempre pensara que os advogados falam com toda a gente sem o mínimo problema, vira-o nas reuniões, descontraído, confiante, mas parecia não saber o que me dizer… na certa considerava-me um parolo e não conseguia falar com pessoas do meu nível. Vi-o falar com a secretária a desmarcar as reuniões dessa tarde, vi-o falar com o patrão sem esse tipo de problemas. Comigo o assunto morria rapidamente. Não sabia o que fazer.

            Mas enquanto ele falava ao telefone, pude gozar o carro. Que bomba, era só dar um cheirinho no acelerador e o bicho dava um salto, colando-me a cabeça ao banco. Devia ser maravilhoso ser-se rico.

            Quando desligou a última chamada parecia desconsolado. Queria ir trabalhar no dia seguinte e falou em chamar um táxi. Tentei outra vez.

            - O doutor precisa dum motorista?

            - Eu sei lá do que é que preciso… acho que vou precisar de uma ama-seca!

            Aquela resposta dura e irritada magoou-me, mas a sua expressão era tão engraçada que tive de me rir… o advogado fino e poderoso precisava de apoio e estava atrapalhado. Gostei de ver a sua expressão suavizar-se quando me viu a rir e acabou por sorrir também.

            - Se me disser uma hora, eu posso vir busca-lo amanhã! – tentei uma vez mais

            - Fazia isso? – vi que ficou espantado

            - Porque não! – respondi – não sou exatamente um homem ocupado!

            Os seus olhos brilharam e senti o olhar de advogado que me deixava de cabeça a andar à roda. Não foi o que me fez reparar nele, era demasiado atraente para precisar disso, mas foi o que me fez… era o que me deixava sem jeito à sua frente. Era um olhar penetrante que me absorvia e parecia sugar-me os pensamentos… não sei se adivinhou o que eu estava a pensar ou não, mas olhou para o relógio e convidou-me para almoçar.
 

            O restaurante era… ou melhor, o restaurante era normal, mas estava situado num sítio deslumbrante. Era à beira rio, mesmo em frente à zona da expo… eu sei que não se chama assim, mas participei na sua construção, para mim vai ser sempre a expo, mudem-lhe o nome as vezes que quiserem. Tinha uma pequena praia, a maré estava vazia e quase se podia pensar que dava para ir a pé para Lisboa. Ao fundo a cidade.

            Vi logo que ele era um cliente habitual e devia deixar boas gorjetas porque foi tratado nas palminhas e mesmo àquela hora serviram-nos choco frito. Estava muito bom, muito bom mesmo, ou então era eu… há meses que não sabia o que era comer num restaurante… primeiro a crise, depois a separação, agora tinha o dinheiro todo contado.

            Ele pareceu ir-se descontraindo lentamente, perguntou coisas sobre mim, pareceu muito interessado no meu divórcio… eu sentira o olhar diferente desde que saímos do hospital… às tantas estava desesperado para se ver livre de mim, a pensar «como é que eu me livro deste paneleiro». Mas ofereceu-se para pedir a um colega que me ajudasse no divórcio. Aquilo tocou-me, eu bem que precisava porque ela não me queria dar nada do que eu tinha ajudado a construir.

            Era confuso, por um lado parecia… não sei, interessado, mas por outro não parecia nada. Senti-me com falta de ar e a sua expressão de dor deu-me a hipótese de sair dali por um momento. O António tinha dito para ele tomar um medicamento quando voltasse a sentir dores e fui ao carro buscar-lho. Vi a sua expressão de surpresa quando peguei na chave do carro dele e me levantei, mas não disse nada.

            Dei um chuto na roda do carro sem saber o que pensar, o que é que estava a acontecer comigo? Sentia-me baralhado, não sabia o que pensar, não percebi nada daquilo… de vez em quando fazia-me acreditar que… depois… ele não gostava de homens e eu é que era um perfeito anormal. Peguei nos medicamentos e fechei a porta com violência. Iria pôr-me a andar assim que conseguisse.

            O seu olhar era penetrante enquanto eu atravessava o restaurante na sua direção. Dei comigo a sorrir feito idiota. Foda-se, é preciso ser-se estúpido… o que é que se passava comigo?

            - Obrigado Jaime!

            Apenas aquilo e eu senti-me… como é que é possível?

            - O António disse para tomar um destes quando começasse a sentir dores! – foi o que me veio à cabeça

            - Eu ouvi, obrigado!

            Novamente aquele sorriso que não dava para entender o que significava e que me fazia pensar que ele se estava a divertir às minhas custas, que estava a brincar comigo. E eu, parvo, vejo-o atrapalhado com a caixa e vou ajudá-lo… pior, faço-o a sorrir, satisfeito por o poder ajudar.

            E o retorno? Engoliu-o, bebeu o resto da água e fixou-me nos olhos…

            - Vamos embora? – perguntou com uma expressão de quem ficara atrapalhado com a situação – estou a sentir-me cansado, não devia ter bebido sangria!

            Mal lhe tocara, mas ele ficou atrapalhado e despachou-me… puta que o pariu… a ele e a mim que estava caidinho…

            - Também não me lembrei, doutor! – tentei parecer bem disposto – pelo menos vai dormir descansado… vou buscar o carro!

            Saí do restaurante com os dentes cerrados. Sentia-me furioso, sentia-me… triste… basicamente estava triste… eu devia saber perfeitamente que ele não era milho para o meu bico.

            Parei o carro à porta do restaurante e saí para o ajudar. Era o motorista, pois bem, seria o motorista.

            Ajudei-o a apertar o cinto de segurança, ele não o conseguia fazer por causa do pulso. Senti o seu olhar sobre mim, mas não o encarei. Fechei a porta e contornei o carro para me instalar ao volante.

            - Para onde, doutor? - tentei parecer profissional e ele demorou um segundo para responder, pareceu surpreendido, não sei bem

            - Preciso de passar pelo banco, quero-lhe dar algum dinheiro para voltar para casa… já foi simpático o suficiente…

            Cerrei os dentes e arranquei… segui as suas instruções, parei onde me mandou, esperei que ele levantasse dinheiro e ajudei-o novamente a instalar-se no carro. Depois fomos para sua casa.

            O seu prédio tinha uma arquitetura fantástica, toda a zona era moderna, bonita e bem cuidada. Zona de ricos. O acesso à garagem era manhoso, apertado, mas estacionei o carro sem problemas e esperei que ele fechasse o portão.

            - Importa-se de subir comigo?

            - Claro que não, doutor!

            Acho que ainda tive esperança que, mas não, não me olhou uma única vez enquanto subíamos para o último andar. Claro que ele tinha de viver no último andar, só podia.

            O apartamento era um sonho… um sonho. Grande, estava decorado com imenso gosto, mobílias simples, mas de aspeto caro, a parede cheia de quadros, todos eles assinados… nunca liguei a isso, mas sabia que os quadros assinados eram únicos e caros. Gostei de quase todos, mas vi o principal, estava na parede da lareira e era um homem, era um homem sim e estava nu. Quadros de merda, coisas modernas que um gajo olha e não percebe bem o que lá está... mas era um homem nu, de certeza absoluta.

            - Gosta do quadro?

            Olhei para ele e senti-me corar. Foda-se, eu já não tenho idade para corar, mas o seu olhar era aquele que já sabemos, senti o calor na cara e soube bem que estava a corar.

            - Gosto! – confessei, até porque era a verdade – mas não se percebe muito bem o que é!

            - O que este tipo de arte tem de belo é que cada pessoa vê o que quer e interpreta de maneira diferente… o que é que vê, Jaime?

            Virei-lhe as costas para olhar o quadro. Sentia a cara a ferver.

            - Não sei muito bem! – consegui responder – mas gosto das cores! Fica bem aqui!

            - O pintor é meu amigo, foi feito por encomenda…

            «só podia»

            - Eu gosto muito de arte! - disse perante o meu silêncio

            «claro que gostas e tens dinheiro a potes para a comprar»

            Senti-me acalmar e tornei a encara-lo… o seu sorriso era simpático, mas os seus olhos devoravam os meus.

            - Tem muito bom gosto, doutor!

            - Gosto de pensar que sim!

            - Tem mesmo, a casa, o carro, os quadros!

            Riu-se.

            - Gostou do carro?

            Dei comigo a sorrir outra vez.

            - Oh doutor, claro que sim! Aquilo é que é um carro!

            - É o que eu acho também… nunca viu o anúncio da VW? «das auto», o carro!

            «ainda por cima fala alemão»

            - Sempre posso contar consigo amanhã?

            Aquilo apanhou-me de surpresa. Acho que não consegui disfarçar porque ele mostrou surpresa também.

            - Se mudou de ideias…

            - Não, não, doutor, não mudei… a que horas me quer cá?

            Vi o seu sorriso com a minha resposta apressada. Não sei se estava brincar comigo, se o que era, mas sentia-me exausto… a cabeça duma pessoa tem um limite de resistência e a minha já não dava mais.

            - Às 9, pode ser?

            - Claro que sim!

            Senti-me feliz, ia vê-lo outra vez… como é que isto se explica?

            Vi-o meter a mão no bolso e tirou 3 notas de 20€.

            - Não leve a mal, Jaime, mas quero que aceite este dinheiro!

            - Oh doutor! – exclamei quase irritado «mas ainda não percebeste que eu não estou aqui pelo dinheiro?» o meu cérebro gritava, mas não saiu nada

            - É justo, Jaime! – disse ele calmamente – perdeu o seu tempo, vai ter de comprar bilhetes de autocarro, é pelo seu incómodo… antes de recusar! – pensei protestar mais, mas a sua voz endureceu, impondo-se – eu gosto de ser pago pelos meus serviços e geralmente sou bem pago, gosto de fazer o mesmo… aceite, por favor!

            E aceitei… pensei não o fazer, mas aceitei, com aqueles olhos fixos em mim não lhe conseguia dizer que não .

            Estendeu-me a mão.

            - Obrigado pelo que fez hoje por mim, Jaime! – disse a sorrir – foi inesperado e senti-me muito bem consigo!

            Apertei-lha e percebi que eu também estava a sorrir outra vez. Aquele cabrãozinho deixava-me sem resistência. Nem respondi, senti-me um bimbo.

            Já estava para sair quando o tornei a ouvir.

            - Jaime!?

            Virei-me sem saber o que esperar.

            Ele coxeou para mim.

            - Mudei de ideias!

            O meu coração deu um salto.

            - Já não quer que venha?

            - Quero que leve o carro! – foi a resposta com um sorriso – para que é que há-de andar de transportes e eu ter o carro parado na garagem?

            - Não vai precisar dele?

            Fez um sorriso de gozo mostrando-me o pulso enfaixado.

            - Duvido muito!

            Senti-me estúpido enquanto ele me metia a chave na mão.

            - Se me chegar alguma multa a casa, sei a quem a cobrar!

            - Oh, doutor! – tive de me rir

            - Até amanhã!

            Só isso, virou-me as costas com um mísero «até amanhã».

            Aquele homem estava-me a dar cabo da cabeça.
 

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