segunda-feira, 25 de março de 2013

Relação Inesperada - conto gay, parte1 - 'Alexandre'


            Levantei-me para ir direto à máquina de café, algo que se tornara um hábito em mim. Depois de tirar um abatanado, numa chávena de chá, instalei-me em frente ao computador para o beber calmamente e ver os meus emails.

            Sentia-me cansado, estava a ter uma semana muito complicada no trabalho, muito complicada mesmo, mas havia esperança de conseguir sobreviver, no dia seguinte seria sexta-feira e depois... fim de semana.

            Mas vamos às apresentações.

            O meu nome é Alexandre Correia Salazar. Não pertenço à família do outro senhor, nem tenho particular admiração por ele, mas gosto do meu nome e reconheço que considero um nome forte devido à obra desse mesmo senhor. O meu percurso de vida, apesar de não ter sido exactamente um mar de rosas, não foi – de forma alguma – infeliz. É verdade que os meus pais faleceram muito cedo, num acidente de viação de que eu fui o único sobrevivente e é verdade também que sempre senti falta deles, mas o ponto positivo disso foi que, sendo bebé, não sofri com a sua morte. Fizeram-me falta, é certo, mas não os perdi e não conheço essa sensação.

            Fui criado em Lisboa, pela minha severa e adorada avó materna. Tive uma constante ideia de ela ser muito velhota, mas tive-a a acompanhar-me, com todo o cuidado e atenção, até aos meus vinte anos e tenho de lhe agradecer tudo aquilo que eu sou. Professora primária da velha guarda, muito paciente, sempre explicativa, cuidadosa em fazer-me compreender tudo – até as razões porque estava de castigo ou apanhava uma palmada – sempre me incutiu o sentido de dever, a honestidade, o cuidado a falar e a escrever, todos os princípios porque me rejo agora, na vida adulta. Nunca tive dificuldade em assumir os meus erros e as suas consequências, nunca tive qualquer problema em apresentar as minhas desculpas quando errava e sempre fui uma pessoa frontal que dizia o que pensava, apesar de sempre ter o cuidado que o fazer com a preocupação em não magoar ninguém.

            Desde sempre fui educado a ler e a pensar por mim próprio… ouvir as diferentes opiniões e perspetivas, mas a decidir por mim próprio, com base nos meus conhecimentos, experiências e raciocínio. Não sou, nem nunca fui, alguém que tem dificuldade em lidar com o que pensa ou que sente. Quando descobri – ou admiti – que era gay, confessei o que se passava à minha avó. Admito, sem problemas, que foi a única vez que a vi dececionada comigo, mas ela explicou-me a razão, disse claramente o que sentia e eu tenho de concordar com ela. Reconheço que deve ser dececionante descobrir que a sua semente vai terminar mas, como afirmou que apesar do que sentia, o seu objetivo de vida era que eu fosse feliz e portanto me continuaria a dar o seu apoio incondicional, a minha vida avançou sem os problemas que conheci em muitos gays com quem me cruzei.

            A minha mentalidade sempre foi a de, nunca esconder o que era, mas nunca anunciar aos sete ventos, como também via muitos outros fazerem. Não tinha razões para esconder ou me envergonhar, mas também nunca senti necessidade de chocar as pessoas e meter-lhes aquilo que era ou do que gostava pelas goelas abaixo, como muitos outros faziam. Não sendo um tipo com uma inteligência acima da média, também não sou exatamente um idiota e sei avaliar bem as mentalidades dos portugueses que, não sendo tão retrógrados como já foram, ainda continuam obtusos em muitas coisas.

            Licenciei em direito e agora, com 35 anos, estágio feito num escritório de advogados de prestígio, um patrono bem considerado na praça e uma carteira de clientes bastante decente, posso-me considerar uma pessoa bem instalada na vida. Tenho um bom rendimento, não só da minha atividade profissional, como o proveniente do prédio que a minha avó me deixou quando faleceu. Poderia ter todas as razões para ser feliz se não fossem os problemas pessoais que me surgem ocasionalmente. Profissionalmente não tenho razões de queixa, economicamente também não, mas a nível pessoal tenho algumas dificuldades, principalmente nos relacionamentos… o meu último namorado é literalmente para esquecer.

            Foi nessa altura que quis sair de Lisboa e o rendimento que aufiro dá para pagar a prestação de um delicioso e moderno apartamento que comprei na margem sul e para fazer uma vida desafogada.

            À partida esta ideia é absurda para a maioria das pessoas… alguém que tem uma dúzia de apartamentos pagos em Lisboa, faz um empréstimo para comprar um na margem sul… parece ridículo, mas é preciso compreender o momento complicado que eu estava a atravessar quando tomei essa decisão. Estava sozinho outra vez, estava deprimido, estava desesperado para sair daquele mundo de podridão e desvario que se tornou a minha vida na capital depois da separação. Precisava de estar longe daquilo a que me habituara, precisava de um sítio novo, de um sítio onde não conhecesse ninguém e onde não sofresse tentações… nem hesitei.

            Já nem me lembro muito bem o que me levou a ir ver casas naquele sítio, acho que foi numa tarde em que resolvi ir fazer compras ao ‘Freeport’ e me enganei no caminho, em vez de sair para Alcochete, escolhi o caminho errado e tive de dar a volta na rotunda do Montijo para voltar a apanhar a via rápida no sentido certo. Irritado por me ter enganado, vi apartamentos à venda naquela zona nova e resolvi ir espreitar. Foi simplesmente isso. Gostei da zona apesar de não ter gostado dos apartamentos e dei mais uma volta por ali até encontrar um pelo qual me apaixonei perdidamente. Numa avenida larga, moderna e bem cuidada, numa zona nova e bonita, cheia de palmeiras e de verde, numa praceta sem saída, portanto calma, encontrei uma série de prédios com uma arquitetura que me encheu o olho… fui ver os apartamentos vagos e passados dois meses era um habitante do Montijo, um berbere do deserto, como colegas e patrono agora me chamavam para me gozar.

            A minha nova casa era num prédio de canto, o último da fila e um apartamento do último andar. O quarto andar direito era um T3 + 1, quer dizer, tinha quatro assoalhadas e mais um acesso direto a uma enorme divisão por cima do apartamento, onde costumam ser as arrecadações; além disso, como era o último andar e como era o prédio da ponta, tinha um soberbo terraço que, não sendo enorme, era sem dúvida alguma um excelente terraço, um local onde pude fazer uma zona de lazer na rua e que, na minha opinião absolutamente parcial, ficou fantástica.

            Garagem privativa, aquilo a que chamam box, uma arquitetura fantástica no prédio, uma zona bonita e bem cuidada com bastantes áreas relvadas, um apartamento enorme com espaço de rua, fora de Lisboa como eu queria, como é que eu poderia hesitar mais? Não o fiz. Decidi alugar também o meu apartamento de Lisboa e consegui um empréstimo na altura certa, na altura em que as casas já estavam a desvalorizar, mas antes das taxas de juro começarem a subir descontroladamente e antes dos bancos começarem a cortar nas atribuições dos créditos.

            Hall espaçoso, cozinha grande, sala enorme, uma suite, um quarto para visitas, um escritório para mim e uma casa de banho para as visitas, isto no quarto piso, com três varandas muito decentes. Em cima, no quinto andar, uma sala monstruosa com uma casa de banho e um belíssimo terraço onde pude criar um ‘chill out’ que ficou absolutamente fantástico; uma zona de laser que era a luz dos meus olhos. Mesa de bilhar com ‘poufs’ e bar no interior, mais uns confortáveis ‘poufs’ e almofadas no exterior, tudo iluminado com fracas luzes, aquele lugar era divino, de dia e de noite, simplesmente perfeito.

            Tornei aquele apartamento na minha casa e senti-me ali como nunca me sentira em mais lugar nenhum. Era a minha casa, minha mesmo e por isso digo que tenho razões para ser feliz… só me faltava alguém para partilhar aquilo tudo… talvez surgisse entretanto.

            A verdade é que a minha situação, presentemente, era bastante boa… depois do fim da relação que terminada de forma abrupta e traumática, saíra de Lisboa… a capital agora só para trabalhar. Abandonara a podridão na noite lisboeta, abandonara a espiral depravada em que me vira metido depois de estar sozinho e ali no ‘deserto’, do outro lado do rio, em pleno campo e longe de tudo, estava a renascer… deixara de beber, deixara de fumar, deixara de sair à noite… estive cinco meses numa espécie de retiro espiritual que me fez renascer com homem… bom ar, relaxamento total, deslocações diárias de bicicleta (que se tornou o meu meio de transporte ali), passeios na enorme ciclovia… isolamento de tudo o que me pudesse criar stress… ler, ouvir música, fazer desporto, os café à beira rio no lugar do Samouco, as tardes entendido ao sol no terraço… sentia-me outro homem.

            Sempre fui uma pessoa bem-disposta, sempre fui simpático e agradável, tenho consciência que sou um bom conversador e tenho um humor sarcástico que, para as pessoas que o apreciam – ou que, pelo menos, o compreendem – me tornam agradável… o Montijo fez-me limpar a cabeça e meses depois voltava a ser o Alexandre que andara desaparecido, que eu queria de volta… só me apercebi de todo o bem que essa mudança de vida me fez quando encontrei gente da minha antiga vida e vi as suas reações à minha nova situação… dizendo que estava com bom aspeto.

            As minhas novas vizinhas e algumas clientes eram muito simpáticas comigo, as minhas colegas eram extremamente atenciosas e insinuantes, enfim, estava com imenso sucesso… até os homens queriam ser meus amigos e quando tive de defender um homem gay de sucesso num processo de abuso de poder, os meus colegas de escritório começaram a gozar-me dizendo que, considerando o meu sucesso, teria de me especializar nesse tipo de clientela… aquilo magoou-me e quase que tive vontade de me assumir perguntando o que pretendiam dizer com aquilo, mas cerrei os dentes e mandei uma piada do tipo «desde que não me queiram pagar com o corpo»… os meus colegas riram-se, continuaram a achar-me um machão igual a eles e quanto a mim… para quê enervar-me? Mas deixemos a minha história de vida, na versão super resumida e voltemos agora ao presente.

            Desliguei o computador e preparei-me para sair de casa. Tinha uma reunião às 11 horas para tratar de um processo de insolvência, mais uma construtora que deixaria de existir, mais uma série de pedreiros que iam para o desemprego, mais uma série de fornecedores que iriam ficar com contas penduradas. Nunca gostara de ser eu a ir ter com os meus clientes, sempre preferira que fossem eles a ir ter comigo ao escritório, eu sou um tipo de circular em gabinetes, não um tipo de circular em obras. Neste caso não havia nada a fazer, tinha de me mentalizar que iria lidar com homens das obras. Claro que não digo isto por me achar superior, ou o que quer que seja, simplesmente era um mundo diferente do meu e não tinha nada a ver comigo.

            Aliás, não reclamei porque o meu cliente era um homem adorável e bom pagador (coisa cada vez mais rara em Portugal), mas não reclamei porque poderia ver o encarregado da obra.

            Eu sei. Acabei de demonstrar que era um bocado snob, ou elitista, ou lá o que me queiram chamar e agora estou a dizer que vou feito tarado atrás do capataz… é injusto acharem isso, mas não completamente… o que é que querem? Gostei dele, estas coisas não se explicam.

            É evidente que a reunião não correu bem. Nenhum homem gosta de saber que a empresa onde trabalhou durante anos vai falir e nenhum homem gosta de saber que vai ser despedido… pior ainda, nenhum homem gosta de saber que o património da empresa já não existe e que nem sequer vai ser indemnizado pelos anos que trabalhou e que não vai receber um cêntimo pelo despedimento. Houve ira, houve comentários desagradáveis e eu estava a habituar-me cada vez mais a ver pessoas naquela situação, pessoas em choque com aquelas notícias, desesperadas sem saber como iriam pagar as contas no futuro, mas era sempre difícil.

            O meu trabalho estava feito, as cartas de despedimento que o dono da empresa fizera questão de entregar pessoalmente, as cartas para o fundo de desemprego que quisera entregar ao mesmo tempo, o Sr. Pacheco era um homem sério que toda a vida trabalhara naquela área, que sempre tratara bem os empregados e administrara bem uma empresa que até se aguentara mais e melhor que muitas outras justamente por ele ser um homem e não um rato. Mesmo assim foi unicamente isso que conseguiu manter aqueles homens controlados… evidentemente que eu aconselhara o meu cliente a tratar das coisas sem aquele contacto direto, que o aconselhara a seguir os procedimentos habituais sem um envolvimento pessoal, mas esse não era o seu estilo, ele sempre enfrentara as coisas e encarara os problemas de frente. Foi ele e o Jaime, o encarregado da obra, que conseguiram manter as coisas tão dentro da normalidade quanto possível.

            Aí está ele, o Jaime. Devia rondar os trinta anos, justamente como eu sempre gostei… mais alto que eu, ombros largos, estilo desembaraçado, tinha muito bom ar. Claro que não era um homem sofisticado, não parecia culto, nem… mas também não era nenhuma cavalgadura, era um tipo simpático, simples, prestável, que sempre foi muito delicado comigo, sempre me tratou bem, era um tipo que trabalhava para viver e senti-me bastante atraído por ele desde o primeiro dia.

            Quando saímos do contentor que era o escritório da empresa naquela obra, toda a gente tinha o semblante carregado, eu incluído apesar de saber que no final seria o único a ser pago à mesma. Ao meu lado via homens abatidos, homens em choque, homens de lágrimas no olhos… homens de todas as idades, desde miúdos a senhores perto dos cinquenta anos… era injusto, era revoltante, mas era a realidade do país. Mais uma empresa de construção civil que deixara de existir.

            O senhor Pacheco metera-se no carro e desaparecera rapidamente de lágrimas nos olhos, era um dos que quase chorara, eu acabei por me demorar mais um pouco a responder ainda a questões dos homens relacionadas com o que deveriam fazer, a maioria deles nunca tinha estado desempregado na vida e não fazia ideia dos passos que tinham de dar.

            Saía da obra tão macambúzio como os outros quando a minha vida mudou.

            Sapatos de estilista com sola de madeira, uma rua a descer com um declive acentuado, areia no passeio… receita para um desastre. O menino dos gabinetes sentiu os pés a derrapar, tentou desesperadamente amparar-se no muro à sua esquerda antes de chocar violentamente com ele, rodou sobre si próprio e aterrou com violência no meio do chão batendo com a cabeça na jante da roda traseira do seu próprio carro.

            Não senti dor, nem senti nada, foi uma daquelas cenas estúpidas que sempre achei que só aconteciam a idiotas. Senti calor na cara, senti imenso calor no braço esquerdo e uma picada no tornozelo, só isso. Fiquei sentado no chão sem perceber o que tinha acontecido, olhando para o Jaime que se aproximava a correr.

            - Então, doutor!? – exclamou aflito

            - Já viu isto!? – bradei eu, atordoado, sentindo-me um perfeito imbecil

            Encarei-o surpreendido e vi uma expressão de susto na sua cara.

            - Magoou-se, doutor? Está a sangrar…

            - O quê?

            Tentei levantar-me, mas assim que apoiei a mão esquerda no chão, senti um choque elétrico a subir até ao ombro. Senti-me a estremecer com violência. O homem estendeu-me a mão para me ajudar a levantar. Consegui fazê-lo, mas quando me tentei apoiar no pé esquerdo, senti como que uma dúzia de agulhas espetadas no tornozelo.

            - É melhor ir ao hospital, doutor! – ouvi o tipo dizer

            - Não é preciso…

            - Já se viu bem? – interrompeu o homem apontando para o vidro traseiro do meu carro

            Apanhei um susto quando me vi refletido no vidro. Batera com a face no muro e raspara-a toda, sangrava de um rasgão na parte esquerda da cara… a outra parte estava suja de ter batido na roda do carro. Aquilo era inacreditável. Estremeci novamente quando o tipo tirou um lenço do bolso e mo passou suavemente na face. Aquilo foi inesperado.

            - Como é que isto é possível? – murmurei confuso, sem conseguir acreditar

            - Estou farto de ver isto! – sorriu simpaticamente enquanto me limpava o sangue da cara – é o prato do dia as pessoas aleijarem-se nas obras… damos um pulo ali ao Amadora-Sintra, doutor, é o mais próximo e eu conheço lá um enfermeiro!

            - E como é que eu vou conduzir?

            - Não vai! – o Jaime riu-se – eu levo-o lá, deixe-me só ligar-lhe!

            Ainda protestei, mas a verdade é que me doía o pulso e o tornozelo, era melhor ver aquilo… a cara era uma questão de desinfetar, mas o resto preocupava-me um pouco. 15 minutos depois parávamos à frente do hospital e estava um enfermeiro à nossa espera a acenar.

            Notei duas coisas imediatamente… uma foi que ele era um bocado ‘abichanado’. Além dos tiques extremamente femininos, notei também que me olhou de cima abaixo enquanto saía do carro a custo. Notei ainda que depois de me analisar, olhou o Jaime e vi o meu acompanhante refletido nas portas de vidro, vi-o atrás de mim a abanar a cabeça como se dissesse «nada de comentários».

            O tratamento à face foi o António que fez, com muito cuidado, todo ele sorrisos e atenções… tive de lhe contar o que acontecera, tive de lhe explicar que o Jaime é que insistira para me trazer ali, não fiz comentários quando o enfermeiro disse que ele era um homem fantástico, mas achei que o tom era de sugestão. Ignorei-o. Esta parte não interessa.

            O que interessa é que duas horas depois saía do hospital com um penso na cara, de muleta e com um braço ao peito. Diagnóstico… o pulso esquerdo aberto, 3 semanas sem o usar, mais uma entorse no tornozelo esquerdo, um mês sem conduzir e sem fazer esforços de nenhum tipo. Patético.

            Eu nem quisera acreditar quando o médico me explicara o que acontecera, por um momento pensara que ele tinha enlouquecido ou que trocara as fichas dos pacientes, não era eu que estava naquelas condições, era impossível aquele nível de estrago por esbarrar e dar um trambolhão no meio da rua. Impossível. Mas não, era a dura realidade e eu só me tinha de ajustar a ela.

            - Está a gozar comigo! – gritara com o médico – eu tenho 3 julgamentos este mês e tenho um recurso e meia dúzia de processos para dar andamento!

            - E vai faze-lo, o senhor está diminuído, não está inválido! – respondera o médico com uma tranquilidade que só me apetecera esbofeteá-lo – pode ir a todos os julgamentos que precisar e dar andamento a todos os processos, desde que o faça de braço ao peito e de canadiana!

            O que é que se responde a isto?

            Encontrei o Jaime tranquilamente encostado a um pilar à saída do hospital. Assim que me viu, veio ter comigo.

            - Então, doutor, foi sério?

            - Parti-me todo! – exclamei desconsolado

            - Está a brincar!

            Encolhi os ombros tristemente, sentia-me deprimido, nunca estivera inválido.

            - Não posso conduzir! – respondi sem saber bem o que fazer – acho que vou ter de deixar o carro aqui e vou de táxi para casa!

            Ele sorriu simpaticamente, abanando a cabeça.

            - Nem pense nisso, eu vou levá-lo! – disse – não me custa nada!

            - Oh Jaime, não tem família? De certeza que tem os seus próprios problemas!

            - Assim não penso neles! – respondeu-me displicentemente – espere aqui que eu vou-lhe buscar o carro! Não saia daqui!

            Quando o carro apareceu, foi inesperado ver o tipo sair a correr e vir ajudar-me a sentar e a apertar o cinto de segurança.

            - Nem sei como lhe agradecer isto, Jaime! – acabei por dizer depois de um silêncio prolongado, quando já estávamos quase a sair da 2ª circular em direcção à ponte

            Ele olhou-me a sorrir.

            - Não tenho grande coisa para fazer, doutor… assim chego a casa mais tarde!

            - Deve ser a primeira pessoa que oiço dizer isso! – observei surpreso

            - Então não deve ter muitos casos de divórcio! – tentou claramente parecer jovial, mas notei bem uma sombra no seu rosto

            - Não é a minha especialidade! – confessei

            - Logo vi… quanto mais tarde chegar, melhor para mim!

            - E como é que vai do Montijo para casa?

            - Não se preocupe, hei-de conseguir arranjar-me!

            - Eu nem sei onde mora, mas não deve ser fácil!

            - Moro perto da Praça de Espanha, doutor, não se preocupe que eu sei que há autocarros daqui para lá… via-os chegar quando ia para o trabalho!

            - Vá lá… mora numa zona central!

            Ele soltou uma gargalhada azeda.

            - Por enquanto!

            - Vai sair de casa por causa do divórcio, não é?

            - Eu já saí de casa há duas semanas, doutor, moro num quarto alugado! Agora sem trabalho é que não sei muito bem como vai ser! – sacudiu a cabeça para afastar a ideia – nem quero pensar nisso!

            - Vai ter direito a subsídio de desemprego!

            - Sim! – respondeu com uma expressão ausente – que bom!

            Senti-me mal e não sabia bem o que comentar, aproveitei para ligar para o escritório… expliquei à secretária o que tinha acontecido e pedi-lhe para avisar os clientes da tarde, desmarcando as reuniões.

            Fez-se novamente silêncio, mas durou poucos minutos, o meu telefone tocou, era o meu patrono.

            - Tiveste um acidente? – ouvi assim que atendi, o estilo dele era inconfundível, prático e autoritário – vou já para aí, estás em que hospital?

            - Já saí, padrinho!

            - Ah foi só chapa! – o homem pareceu-me genuinamente aliviado, ele sempre gostara de mim e durante algum tempo até quisera que eu casasse com a filha… sugerira-me persuasivamente que a tentasse conquistar, mas ela arranjara alguém e isso fora um alívio para mim

            - Chapa? – precisei de um segundo para entender – não foi de carro, padrinho, caí e abri um pulso e torci o tornozelo!

            - Caíste!? – exclamara o homem incrédulo

            - Ia a andar na rua e escorreguei!

            - E partiste-te todo a andar na rua? – o seu tom de voz demonstrava claramente que me estava a achar um fenómeno que personificava a estupidez

            - Tenho radiografias para o provar!

            - Ora! – bufou – eu sei isso muito bem, mas partires-te todo a cair na rua… francamente!

            A sua preocupação seguinte foi quando eu regressaria ao trabalho e ficou mais satisfeito quando lhe expliquei que pretendia apenas ficar em casa naquela tarde, no dia seguinte tencionava trabalhar. A partir daí relaxou e o acidente passou a ser irrelevante, preocupou-se com a logística, algo que nem me passara pela cabeça. Desterrado nos confins do planeta (para ele o Montijo era como se fosse no meio do Alentejo, parecia partilhar a opinião do ex-ministro), como é que eu me deslocaria sem poder conduzir, como é que eu comeria se não tinha um restaurante na minha rua como em Lisboa, quem é que cuidaria de mim?

            Tive de lhe explicar que ainda não pensara nisso… no dia seguinte chamaria um táxi e depois veria o que fazer. Quando desliguei o telefone estava ainda mais deprimido.

            - O doutor precisa de um motorista?

            - Eu sei lá do que é que preciso! – resmunguei abespinhado – acho que vou precisar de uma ama seca!

            Foi a primeira vez que o vi com um sorriso divertido nos lábios.

            - Se me disser uma hora, eu posso vir busca-lo amanhã!

            - Fazia isso? – olhei-o surpreendido

            Ele encolheu os ombros.

            - Não sou exatamente um homem ocupado!

            Olhei para o relógio. Eram 16h18.

            - Quer almoçar comigo, Jaime?

            Ele tornou a sorrir.

            - Por acaso tenho fome! – admitiu – mas a esta hora?

            - E não tem nada que fazer, pois não?

            - Não, doutor, não tenho!

            - Então vire aqui à direita, vamos lá abaixo ao rio!


            O meu restaurante favorito tinha pouca gente àquela hora. Havia algumas mesas ocupadas, como sempre, mas não tivemos problemas em arranjar uma para nós. Consegui explicar ao empregado o que me acontecera com algum humor e depois de lhe explicar que tínhamos estado no hospital e não tínhamos almoçado, ele prontificou-se a convencer a cozinheira a fazer qualquer coisa para comermos… choco frito pareceu uma ótima ideia.

            - Este sítio é muito bonito! – comentou o Jaime – é muito caro?

            - Não se preocupe com isso! – consegui sorrir olhando em volta – está por minha conta, o mínimo que posso fazer depois de o fazer passar horas às voltas comigo é oferecer-lhe de comer!

            - Não me custou nada, doutor… se tivesse ido para casa ia estar o resto da tarde a pensar na vida e tinha sido muito pior! – encolheu os ombros – e assim estive distraído!

            - O que é que vai fazer agora?

            - Não sei bem! – olhou para o rio – não sei mesmo… se calhar vou para fora, mesmo com a história das facadas na Alemanha… aqui não tenho futuro, o país está parado nesta área e eu parado enlouqueço, não consigo…

            Olhou-me com um sorriso triste.

            - Parece que acontece tudo ao mesmo tempo, não é? – comentei sentindo-me um palerma

            Não sabia bem o que dizer, coisa rara em mim.

            - É mesmo… e eu só levo porrada… o divórcio a correr mal, a minha mulher a fazer-me a vida num inferno, eu a dormir num quarto que… - sacudiu a cabeça – e agora a coroa de glória, sou despedido… só falta cair-me um bocado do céu na cabeça!

            - O divórcio está a correr mal? – perguntei tentando levar a conversa para um tema onde poderia falar com alguma segurança

            - Os pais dela contrataram um advogado a sério e eu não tenho dinheiro para isso, tenho um garoto que acabou de sair da faculdade!

            - Sei bem! – pensando que ele tinha muito poucas hipóteses – há muito património?

            - Uma fortuna! – riu-se azedo – não, doutor, só algum dinheiro que poupámos, a casa fica para ela porque fui eu que saí… nem eu a queria, ela tem ajuda dos pais e consegue mante-la, eu nunca o conseguia… ainda mais agora…

            Expliquei-lhe o que sabia sobre esse tipo de assunto e acabei por me oferecer para falar com o meu colega que era especialista em divórcios.

            - Eu não tenho dinheiro para ele, doutor! – riu-se servindo-se de choco depois de me servir a mim – não me leve a mal, mas vocês são mais caros que as meninas…

            - Ora, Jaime, até parece que não sabe como as coisas funcionam! – ri também – o Jaime fez-me um favor e eu estou em divida consigo, o meu colega deve-me um favor e eu vou cobrar-lho… eu pago-lhe a minha dívida a si, ele paga-me a dívida dele a mim e ficamos todos felizes!

            - Está a falar a sério? – a sua expressão acusou surpresa

            - Alguma vez me viu brincar com este tipo de coisas?

            - Não! – foi a resposta – mas porque é que havia de fazer isso por mim?

            - E porque é que não havia de fazer? – ripostei – porque é que o Jaime, tendo sido despedido, acabou por passar parte do dia no hospital com o advogado que o fez perder o emprego?

            Foi um sorriso genuino que o vi fazer. Pareceu esperançado.

            - Obrigado, doutor!

            - Chegando a casa faço uma chamada, ponho o meu colega em campo e depois é esperar para ver… ele é dos melhores especialistas em divórcios que conheço!

            - Eu só quero algum do dinheiro, não quero a casa e não preciso do carro!

            - O Jaime não conhece o Fernando Sampaio… vai ter aquilo a que tiver direito, nem mais, nem menos… seja como for, isso é para discutir com o seu advogado, não comigo! – sorri-lhe interrompendo o que ia para dizer – o choco está delicioso e já reparou na tarde linda que está?

            Olhei pela janela para o sol que começava a descer sobre a cidade do outro lado do rio. Aos nossos pés estava o pátio do restaurante, depois a praia fluvial, a seguir o rio e ao fundo o Parque das Nações com a torre e a enorme bandeira a esvoaçar… por trás de tudo, a cidade de Lisboa que se prolongava até desaparecer no horizonte.

            - É tudo muito bonito aqui! – senti-o sorrir, mesmo sem o olhar – ainda bem que insisti em traze-lo a casa… nunca pensei poder sentir-me satisfeito depois de ter sido despedido!

            O seu olhar era desconcertante e eu não sabia muito bem o que pensar de tudo aquilo.

            - Sei perfeitamente o que quer dizer… eu venho cá com muita frequência, principalmente quando os dias me correm mal, como hoje… saio sempre daqui a sentir-me um pouco melhor!

            - Acredito! – olhou-me novamente de uma forma que me surpreendeu – eu não conhecia esta zona!

            - Ficou a conhecer! E a mim soube-me muito bem ter companhia, para variar um pouco… mesmo com dores! – agitei-me e sacudi o braço ao sentir as picadas no pulso a regressarem

            Ele endireitou-se imediatamente.

            - Tem dores, doutor? Os medicamentos ficaram no carro, vou lá buscar!

            Levantou-se e nem esperou por qualquer palavra minha, pegou na chave do carro e virou-me as costas, dirigindo-se à saída do restaurante.

            Fiquei sem saber o que pensar, mas não durante muito tempo. Os meus olhos analisaram as calças de ganga justas, moldadas às suas pernas, salientando um traseiro muito atraente. A grossa camisola de malha disfarçava o tronco, mas não o suficiente para esconder uns ombros largos. É certo que não era o tipo de homem que à partida me atraia, mas tinha qualquer coisa que me agradava… muito. Pensei no enfermeiro seu amigo, esse era gay de certeza… de onde conheceria o Jaime? Como se tornara seu amigo? Que significara os olhares que tinham trocado? Isso teria alguma coisa a ver com as razões do divórcio?

            Defeito profissional, diria o meu amigo Hugo… perguntas atrás de perguntas, atrás de perguntas…

            O Jaime sempre me tratara com todo o respeito, eu estava habituado àquele tipo de deferência por parte dos clientes, mas sempre achara que não era só isso. O que ele fizera não era normal, largar tudo para me levar ao hospital? Não conheço ninguém que o tivesse feito. Depois eram as atenções com que me cumulava… era mais que o normal, tinha a certeza… ou será que queria acreditar nisso?

            Ele sorria-me enquanto se aproximava. Tinha um sorriso bonito, um pouco triste, mas um sorriso bonito.

            «controla-te, Alexandre» ordenei a mim próprio «tu não és uma bicha desesperada»

            Ou seria? O pior é que cada vez me parecia mais que o era realmente. Não o consegui evitar, não sei se me sentia inseguro por estar lesionado, se estava desesperado por um homem, se ele era realmente atraente… como é que se sabe uma coisa assim? Atraia-me, ponto final.

            - O António disse para tomar um destes quando começasse a sentir dores!

            Sentou-se à minha frente e estendeu-me a caixa. Agradeci com o meu melhor sorriso, não foi fácil abri-la só com a mão direita. Vendo que eu estava em dificuldades, largou a chávena do café e tirou-ma das mãos suavemente, abriu-a ele com um sorriso doce. Tirou uma carteira de comprimidos e fez saltar um deles, estendendo-mo sem lhe tocar.

            Vindo não sei de onde, senti vontade de lhe agarrar a camisola e o puxar para mim para o beijar ali mesmo. Em vez disso aceitei o comprimido e engoli-o com o resto da água.

            - Vamos embora? – perguntei sentindo-me atrapalhado com a situação e constrangido com os meus pensamentos – estou a sentir-me cansado, não devia ter bebido sangria!

            - Também não me lembrei, doutor! – riu-se com um ar cúmplice – pelo menos vai dormir descansado!

            Iria mesmo?

 

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