quarta-feira, 27 de março de 2013

Relação Inesperada - conto gay, parte3 - 'Alexandre'

 


*** Alexandre ***

             Eu não sabia bem o que fazer, não conseguia tirar o Jaime da cabeça. Não entendia o que acontecera, mas quando nos tocamos ele se retraiu. Era estranho. Num momento parecia sentir-se bem comigo, no outro parecia atrapalhado. De certeza que a última coisa que queria era ter-se livrado da mulher para agora ter um homem atrás de si.

            Paguei a conta do restaurante e arrastei-me até ao carro. Realmente há dias que são um Inferno.

            Ele parara o carro tão próximo da porta quanto possível. Estava de porta aberta à minha espera. Os seus olhos pareciam vazios, a sua expressão era parecida com a de qualquer motorista profissional que me transportara. Fiquei confuso, senti o seu cheiro quando se curvou sobre mim para me prender o cinto de segurança. Podia-lhe ter beijado o pescoço ali mesmo… quis faze-lo, mas ainda bem que não o fiz… nem me olhou, fechou a porta, contornou o carro e sentou-se ao volante.

            - Para onde, doutor?

            Senti dor no pulso e no tornozelo em simultâneo… foi de certeza uma descarga de energia porque a sua frieza desorientou-me.

            - Preciso passar pelo banco! – consegui finalmente dizer – quero-lhe dar algum dinheiro para voltar para casa! – fiz uma pausa, mas ele nem me olhou – já foi simpático o suficiente! – terminei olhando para a rua para que não me pudesse ver a morder o lábio

            Ele arrancou sem uma resposta. Aquele homem era o diabo encarnado e estava-me a enlouquecer.

            Saído do banco, desejei ardentemente um olhar dele… tive um olhar de relance, quando se endireitava para sair e… pasme-se… fiquei satisfeito com isso. O que estava a acontecer comigo?


            Estacionou o carro com cuidado e acedeu a subir comigo. Observei-o através do espelho do elevador… olhou-me várias vezes… que olhar era aquele? Seria curiosidade? Admiração? Respeito? Seria o quê? Poderia ser interesse? Queria tanto que fosse interesse… podia ser desprezo por perceber que sou gay… não, isso não podia ser, não quero que seja!

            Depois vi a sua expressão a observar a casa, estava impressionado. Vi-o fixar-se no meu quadro na lareira. Quis dizer-lhe que fora eu o modelo.

            - Gosta do quadro?

            Vi-o corar… gostei de o ver corar.

            - Gosto! – foi a sua resposta – mas não se percebe muito bem o que é!

            Fiquei curioso… estava a disfarçar? Via-se perfeitamente o que era, era um homem nu na praia, era eu pintado pelo Hugo.

            Expliquei-lhe que cada pessoa vê algo diferente na arte, nunca admiti que me obrigassem a ver algo que supostos especialistas decidiam que fosse.

            - O que vê, Jaime? – insisti para ver a sua reação

            - Não sei muito bem, mas gostos das cores, fica bem aqui!

            Virou-me as costas. Desviou o assunto, ou então não via mesmo nada, ou então não queria falar do que via… se calhar até estava enojado a pensar que eu podia ter dinheiro, mas não passava de um…

            Senti uma dor de cabeça a caminho. Troquei umas trivialidades com ele sobre o carro e mais não sei quê e senti sempre que preferia enfrentar um tribunal hostil do que falar com aquele tipo. Era confuso para mim, ele era um mistério.

            - Sempre posso contar consigo amanhã? – acabei por perguntar pois precisava saber isso, era o que eu mais queria saber… a sua expressão de surpresa apanhou-me desprevenido, foi como uma facada… estaria desesperado para se ver livre de mim?

            - Se mudou de ideias…

            Quis-lhe dar espaço para recusar, não queria que se sentisse obrigado ao que quer que fosse.

            - Não, não, doutor, não mudei… a que horas me quer cá?

            Sorri, deliciado, confundido com as diferentes mensagens que ele transmitia, num momento parecia querer desaparecer, depois isto… ele devia ser bipolar, ou então estava mesmo decidido a enlouquecer-me.

            Tirei o dinheiro e estendi-lhe 60€. A sua expressão foi de nervos, quase fúria…

            - Não leve a mal, Jaime, mas quero que aceite este dinheiro! – disse o mais docemente que consegui

            Vi-o a pensar algo que não disse… o que seria? Algo do tipo «deves pensar que me compras» imaginei analisando a sua expressão irada.

            - É justo, Jaime! – disse tentando manter-me calmo – perdeu o seu tempo, vai ter de comprar bilhetes de autocarro, é pelo seu incómodo! – ele preparava-se para recusar, mas não o permiti – antes de recusar! – nem o deixei falar, fui duro justamente para que não pudesse pensar que o queria comprar, nunca pagara para ter alguém e aquela ideia ofendia-me profundamente, quis ser perfeitamente claro – eu gosto de ser pago pelos meus serviços e geralmente sou bem pago, gosto de fazer o mesmo… aceite, por favor!

            Aceitou o dinheiro e aceitou também a minha mão quando lha estendi. Novamente uma expressão doce no seu rosto, novamente os olhos a brilhar.

            - Obrigado pelo que fez hoje por mim, Jaime! – disse-lhe a sorrir, feliz com a sua expressão – foi inesperado e senti-me muito bem consigo!

            O seu olhar foi intenso, pareceu gostar do cumprimento, mas não respondeu. Pareceu atrapalhado e afastou-se. Quando o vi abrir a porta da rua achei que não o veria mais.

            - Jaime!? – chamei antes de conseguir pensar

            Ele virou-se… a sua expressão era hesitante… só queria que tivesse vindo ter comigo, que…

            - Mudei de ideias! – disse-lhe

            Vi-o estremecer.

            - Já não quer que venha?

            «Quero que fiques comigo» pensei «quero tanto que fiques comigo», mas descobri que sou um cobarde…

            - Quero que leve o carro! – foi a única coisa que consegui dizer – para que há-de andar de transportes e eu ter o carro parado!

            Achei que ficou dececionado, embora não entenda bem porquê. De carro teria de voltar mesmo. Não lhe disse o que queria dizer, mas senti-me mais seguro, podia ser que no dia seguinte tivesse essa coragem.

            - Não precisa dele?

            Mostrei-lhe o pulso a rir.

            - Duvido muito!

            A sua expressão quando lhe dei a chave parecia a de uma criança quando se lhe oferece um presente, ele gostara claramente do carro, os seus olhos brilhavam. Agora, mesmo que ganhasse coragem, não era capaz de lhe pedir para ficar. Disse-lhe um «até amanhã» apressado e coxeei o mais rapidamente que pude de volta à sala. Quando ouvi a porta a bater atrás de mim atirei a muleta com toda a força para o sofá e senti as lágrimas inundarem-me os olhos. Aquele homem estava-me a dar cabo da cabeça.

            Chorei mesmo, chorei por ser um cobarde, chorei por não o entender, chorei por não me conseguir fazer compreender, chorei pela minha queda, descarreguei todas emoções e todas as frustrações do dia… todas, chorei até adormecer no sofá, exausto.

 

            Acordei perto das 21horas, mais calmo, mais descansado… cheio de sede. Triste, mas sentindo-me bem melhor… o pulso não doía muito, o tornozelo também não, o coração… esse doía-me um bocadinho. Estaria apaixonado? Não, isso não podia ser, ninguém se apaixona assim e eu não acredito no amor à primeira vista… ele tinha qualquer coisa que me deixava doido de desejo, estava a sentir-me cada vez mais atraído por ele… se calhar é isso que é a paixão inicial, provavelmente estaria realmente apaixonado.

            O telefone tocou. Revirei os olhos. Vi-me a caminho da esquadra da polícia para tentar libertar um idiota bêbado. Desta vez não tinha sorte, eu não podia sair, fosse quem fosse. Não conhecia aquele número, mas pelo menos não era um número incógnito.

            - Boa noite, doutor, desculpe ligar-lhe a esta hora!

            Tive vontade de atirar o telefone à parede, era sempre assim que começavam os problemas.

            - Quem fala? – consegui não ser rude, mas também não fui simpático… fiz de propósito

            - É o Jaime!

            - Jaime! – senti um sorriso a abrir-se sem que o pudesse controlar, nem queria faze-lo, o meu coração disparou imediatamente – está tudo bem?

            - Desculpe ligar-lhe, mas revistei-lhe o carro à procura do seu número e encontrei um cartão pessoal!

            - Ainda bem que ligaste!

            Apercebi-me imediatamente que o tinha tratado por ‘tu’, não pensara… fez um silêncio momentâneo e senti vontade de bater com a cabeça na parede.

            - Desculpe trata-lo assim, nem pensei! – apressei-me a dizer – acordei agora e ainda não consigo pensar devidamente… está tudo bem, aconteceu alguma coisa?

            Ouvi um baque que não percebi o que era.

            - Não faz mal! – ouvi num tom que não dava para identificar – liguei para… pronto, para ficar com o meu número, no caso de ser preciso alguma coisa!

            - Ah sim, obrigado! – esperava algo mais… não sei – por acaso já tinha pensado nisso! – tentei disfarçar a deceção

            Novo baque do outro lado. Estava mesmo para lhe perguntar o que era aquele barulho quando ele tornou a falar.

            - Lembrei-me que podia querer… não sei se toma o pequeno-almoço em casa, mas posso ir mais cedo e parar para comprar pão!

            Aquilo deixou-me literalmente de boca aberta.

            - Está aí, doutor?

            - Estou sim… fiquei sem fala e olhe que não é uma coisa fácil de acontecer!

            Senti-o sorrir do outro lado.

            - Eu vou acordar às 7 de qualquer maneira… e como o doutor de certeza não consegue preparar o pequeno-almoço!

            - Juro-lhe que se me diz que sabe cozinhar eu penso muito seriamente a arranjar-lhe um contrato a sério!

            - Um contrato a sério? – foi a vez dele ficar surpreendido

            - Sim… para motorista, cozinheiro e sei lá mais o quê…

            - Eu preciso de trabalhar, doutor… e sei fazer tudo em casa!

            Engoli em seco.

            - Pelo que já vi tem muitas facetas… foi um motorista perfeito!

            - Então apareço mais cedo?

            - Bem, eu levanto-me às oito… antes disso apanha-me a dormir!

            - Vou ter cuidado, doutor! Vou ter de desligar porque vou ficar sem saldo! Até amanhã!

            Desliguei o telefone perplexo. O que fora aquilo? Ele ponderara a hipótese de trabalhar para mim? Pareceu-me disponível para isso, para me conduzir, cozinhar e essas coisas todas… eu teria percebido bem?

            Fui para a cama a pensar nisso, a pensar no Jaime e na ideia dele trabalhar para mim, teria de vir viver comigo… essa ideia agradava-me, agradava-me muito, eu gostara da sua companhia, eu gostara dele. Tornei a adormecer imaginando o seu corpo nu.

 

            O despertador tocou às 8 horas. Dei-lhe um murro e sentei-me na cama. Há muito tempo que não acordava assim, pronto para me levantar. Mas tinha boas razões para isso, dali a pouco teria o Jaime a tocar-me à campainha. Vesti o robe e abri a torneira do duche para a água aquecer. Coxeei até à cozinha para ligar a máquina do café e regressei o mais rapidamente que pude, queria-me despachar, queria estar pronto quando ele chegasse.

            A campainha da porta tocou.

            «raios partam» pensei

            Era a porta cá de cima, o toque era diferente da campainha do prédio. Se tocava já cá em cima, significava que entrara pela garagem, só podia ser ele. Olhei-me no espelho e tentei desesperadamente alisar o cabelo que estava completamente em pé.

            Espreitei pelo óculo da porta… claro que era ele.

            Abri a porta de boca aberta, nem queria acreditar. O Jaime estava de fato, de fato mesmo, um fato cinza escuro, camisa cinza claro e gravata nos dois tons de cinza. Olhei-o de cima abaixo, incrédulo… estava deslumbrante, impecavelmente vestido, com o saco de compras na mão, os olhos a brilhar e um sorriso divertido nos lábios.

            - Bom dia, doutor!

            - Ainda não tomei duche! – consegui dizer com alguma dificuldade

            - Precisa de ajuda? – o seu olhar foi intenso, pareceu provocador

            Ou então fui eu a ver coisas.

            - Acho que não! – consegui sorrir – entre, vou tentar ser rápido!

            Pelo menos a afastar-me para a casa de banho fui bastante rápido. A minha cabeça rodava, não o esperara tão cedo. Tirei as ligaduras com um sorriso nos lábios, eu também fora analisado dos pés à cabeça, bem vira os seus olhos a percorrerem-me o corpo, vira-o sem sombra de dúvidas e vira perfeitamente que gostara.

            Deve ter sido o meu record a tomar duche, o banho mais rápido da história… a mesma coisa a cortar a barba, mas aí demorei o tempo necessário, não me queria esfaquear, já estava lesionado o suficiente. Pensei vestir-me primeiro, mas queria falar com ele, queria vê-lo bem… fui para a cozinha.

            Encontrei os seus olhos fixos em mim, brilharam como quando lhe abrira a porta.

            - Café simples ou com leite, doutor?

            - Café de máquina! – respondi, colocando uma pastilha – cheio!

            Olhei-o enquanto cortava uma sandes ao meio. Devia ser para mim.

            - Já tomou café?

            - Já, doutor, obrigado! – olhou-me a sorrir, gostara que lhe tivesse perguntado

            Sentei-me tentando não o olhar demasiadamente. Foi difícil parecer natural e descontraído.

            - O Jaime hoje está… – faltava-me a palavra, só me lembrava de ‘deslumbrante’, mas o queria usar já – impecável!

            Quase que senti vergonha de ser um homem que vive do uso das palavras e não me lembrar de um adjetivo melhor para o qualificar. Vi a sua expressão à terceira colher de açúcar.

            - O doutor é guloso! – fixou-me a sorrir

            Era mais uma afirmação que uma pergunta. Tive de me rir, toda a gente gozava com a quantidade de açúcar que sempre ponho no café. Às vezes irritava-me e perdia a paciência, mas eu estava feliz por ele estar comigo.

            - Não sou, tenho bom gosto… guloso é quem gosta de tudo, que come tudo e bebe tudo… quem gosta de coisas boas simplesmente tem bom gosto! – sorri-lhe sem dizer o que mais estava a pensar «é por ter bom gosto que estou a adorar ter-te aqui comigo»

            Ele riu-se.

            - Ninguém pode por em causa o seu bom gosto! – disse a rir – o seu bom gosto é…

            - Inegável! – tentei disfarçar o prazer que me deu a sua expressão – isso quer dizer que vou receber uma multa na próxima semana?

            - Espero que não! – fez uma expressão de garoto mal comportado, apanhado em flagrante

            - Abusou dele?

            - Não, doutor! – mordeu o lábio de uma forma extremamente sexy – ele tinha dado mais do que eu lhe pedi!

            «exatamente como eu» pensei imediatamente

 

            O telefone tocou… diabos levassem a gente do escritório. Um cliente a querer saber se o poderia receber mais cedo. Tinha de ser, aquele era dos que não gostavam de ouvir «não» e eu não me podia dar ao luxo de o fazer, a avença com aquela empresa era polémica, constantemente processada e portanto uma das minhas principais fontes de rendimento.

            - Temos de sair mais cedo! – suspirei para o Jaime

            - Mais uma trapalhada para o doutor resolver! – sorriu simpaticamente

            - É o que eu faço! – encolhi os ombros sentindo-me feliz – não me tenho dado mal nesse campo!

            A única coisa em que me dava mal era em resolver as trapalhadas da minha vida pessoal, mas isso acabaria por ter uma solução mais tarde ou mais cedo… cada vez acreditava mais que seria mais cedo.

            Sentia-me bem-disposto, sentia-me feliz… o fato azul era demasiado escuro, optei pelo castanho, queria uma cor clara, uma cor mais de acordo com o meu estado de espírito.

            Foi uma boa escolha, quando cheguei à sua frente o seu olhar mostrou-mo sem sombra para dúvidas… um olhar intenso, de análise, um olhar que demonstrava ter gostado do que viu.

            - Está muito bem, doutor!

            As palavras eram simples, mas a sua expressão dizia mais que isso.

            - Achas? O nó da gravata deu trabalho, mas não é fácil usar uma só mão!

            Percebi que o tinha tratado por ‘tu’ novamente, mas não me importei, eu não conseguia tirar os meus olhos dos dele e do que via neles. Não conseguia parar de sorrir e ele também não o fez… ou não reparou que eu o tratara por ‘tu’, ou desta vez não se importou.

            - Eu tive de fazer meia dúzia antes de ficar tolerável!

            Decidira que seria mais corajoso e fui-o… levei a mão à sua gravata e, na verdade não fiz nada, mas toquei-lhe. Ele estremeceu, não aguentou o meu olhar, acabou por me conseguir voltar a encarar e fê-lo com um enorme sorriso que teve um duplo efeito em mim. Adorei aquele olhar, adorei a sua reação e amaldiçoei o Pires de Andrade pela reunião… se o homem não fosse quem era e tivesse o impacto que tinha, juro que teria desmarcado.


(ver parte4)

 

 

2 comentários:

  1. Gostei mas fiquei um bocado dececionado. não sei explicar. tanto stres e depois resolvem as coisas tão depressa.gostei nuno, mas achei o fim apressado.

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    1. é curioso que digas isso... viste o ponto de interrogação? escrevi 'final?'. Eu tive a mesma sensação, mas quis publicar à mesma. Se teve o efeito de te fazer escrever um comentário... fantástico! Muito obrigado.
      Já alterei ambas a versões vou alterar este post colocando apenas a versão do Alexandre, vou ver se ainda consigo alterar a do Jaime hoje. Fica a faltar o final.

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